segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O mito das "frutas e verduras" — Parte 1




Todo mundo sabe que comer frutas e verduras* é importante, certo? Mas por quê? O que torna esses alimentos diferentes dos outros? O que tem de especial neles? Por que temos a impressão de que eles são, talvez, os grupos mais importantes? Por que costumam ser mais lembrados que os demais?


*Tecnicamente, na Nutrição, o termo correto é hortaliças. Mas a maioria das pessoas fala verduras em vez de hortaliças. Nesse texto, vou usar as duas formas, mas sempre com o mesmo significado: alimentos vegetais que não são cereais, leguminosas, frutas, raízes, sementes ou oleaginosas — o que sobra são as hortaliças. E apesar de hortaliças ser o termo tecnicamente adequado, vai dizer que falar “frutas e verduras” não soa melhor do que “frutas e hortaliças”?


Essas perguntas talvez tenham várias respostas, mas acredito que uma delas resume quase tudo o que acreditamos sobre as frutas e verduras: elas são fontes importantes de vitaminas e minerais. Muitas pessoas não gostam, mas comem. Muitas pessoas não fariam questão, mas comem. Como explicar isso? Talvez a única resposta plausível seja justamente essa de que as frutas e verduras são as nossas melhores fontes de vitaminas e minerais. Se não temos muita escolha quando o assunto é a ingestão desses nutrientes tão importantes, então “tem que comer!”.

Tecnicamente falando, vitaminas e minerais compõem o grupo que chamamos de micronutrientes. O “micro” não é porque vitaminas e minerais têm um tamanho pequeno, mas porque são nutrientes que precisam ser ingeridos em quantidades bem menores que os macronutrientes (carboidratos, proteínas e gorduras).

No dia a dia, costumamos falar mais sobre macronutrientes do que sobre micronutrientes. Seu amigo provavelmente nunca perguntou quantos miligramas de vitamina B3 ou zinco sua dieta tem, mas já deve ter perguntado quanto tem de carboidrato, gordura ou proteína. Apesar disso, ainda temos a tendência de considerar os micronutrientes mais importantes do que os macronutrientes. Quase ninguém se preocupa em ingerir quantidades insuficientes de carboidratos, proteínas ou gorduras, mas quase todo mundo já se perguntou se poderia estar com alguma deficiência de vitaminas ou minerais.

Além da ideia das frutas e verduras como fontes mais do que importantes de micronutrientes, existe outro ponto importante nessa história: as calorias. As frutas possuem baixa densidade calórica; as verduras têm uma densidade energética menor ainda. Isso significa que grandes quantidades (em peso) desses alimentos geralmente não apresentam um valor energético elevado. Poderia existir algo melhor do que consumir esses alimentos tão ricos em vitamina e minerais e, ainda assim, uma baixa quantidade de calorias? É quase um sonho, para pacientes e nutricionistas.

E talvez fique apenas no quase. Porque a realidade sobre a riqueza de micronutrientes nas frutas e verduras é um pouco, ou até muito, diferente do que quase todas as pessoas — quase todas mesmo, incluindo profissionais — acredita.


Densidade energética x Densidade nutricional

Mais acima mencionei a densidade energética, que nada mais é do que a concentração de calorias de um alimento em uma determinada quantidade. Para compararmos a densidade energética de dois alimentos diferentes, temos que usar a mesma quantidade (em peso) para eles.

Por exemplo, podemos comparar 100 g de abacate contra 100 g de um biscoito. Nessa quantidade, o abacate normalmente contém entre 100 e 150 kcal. Por outro lado, biscoitos podem conter entre 300 e 500 kcal. Dessa forma, uma vez que claramente contêm mais calorias numa mesma quantidade, podemos afirmar que os biscoitos possuem uma densidade energética superior à do abacate.

Além da densidade energética, temos também a densidade nutricional. Como o nome sugere, esse conceito está relacionado à concentração de nutrientes (micronutrientes) presente em determinada quantidade de um alimento.

A densidade nutricional é mais complexa do que a densidade energética, porque são inúmeras vitaminas e minerais que vão influenciar o quanto um alimento é nutricionalmente denso ou não. Na medida em que a densidade energética leva em consideração apenas o valor energético e o peso do alimento, temos um cálculo fácil que permite comparações simples e diretas entre os alimentos. Por outro lado, como temos dezenas de vitaminas e minerais quando falamos de densidade nutricional, comparar diferentes alimentos às vezes é difícil.

Mas nem sempre é difícil, mesmo quando não fazemos nenhum cálculo específico para a densidade nutricional. Utilizando o exemplo anterior, a comparação é bem simples. Se olharmos para cada um dos micronutrientes do abacate e de um biscoito, numa mesma porção de cada alimento (100 g, por exemplo), vamos ver que o abacate é mais rico que o biscoito na maioria das vitaminas e minerais — a não ser que estejamos falando de um biscoito adicionado de vitaminas e minerais, mas essa é outra história. Por isso, nesse caso fica fácil afirmar que o abacate é um alimento nutricionalmente mais rico, ou seja, com maior densidade nutricional, que os biscoitos.

As dificuldades podem começar a surgir quando comparamos dois ou mais alimentos de verdade. Por exemplo, como comparar o abacate a outra fruta? E como compará-lo às nozes e castanhas, já que o abacate, do ponto de vista nutricional, se assemelha mais às oleaginosas do que às frutas? E a comparação com outros alimentos de outros grupos alimentares?

E se os dois alimentos comparados forem semelhantes, mas um é mais rico na vitamina A e no mineral B, enquanto o outro é mais rico na vitamina C e no mineral D? Devemos atribuir "pesos" diferentes para nutrientes diferentes, a fim de determinarmos se um alimento é nutricionalmente superior ao outro? Por isso as respostas nem sempre são simples, até porque normalmente dependem do contexto e de uma série de outros fatores.

Até existem definições técnicas e “oficiais” de como podemos calcular a densidade nutricional dos alimentos, justamente como uma tentativa de se estabelecer os "melhores" e os "piores" alimentos que poderiam compor nossa alimentação. O pesquisador Adam Drewnowski, da Universidade de Washington, provavelmente é o principal nome nessa área. Particularmente não concordo com todos os critérios que são utilizados para classificar os alimentos de acordo com suas densidades nutricionais, até porque os pesquisadores costumam atribuir “pesos” diferentes para cada nutriente, mas esses estudos talvez tenham certo potencial. Para quem se interessar, duas sugestões de estudos para leitura:

- Concept of a nutritious food: toward a nutrient density score.
- Nutrient density: principles and evaluation tools.


Os mais ricos em vitaminas e minerais?

Aqui não vamos calcular valores específicos de densidade nutricional dos alimentos, até porque isso não é necessário. Para o nosso objetivo, que é entender o quanto as frutas e verduras são ricas em micronutrientes, simplesmente olhar para as quantidades desses nutrientes é suficiente.

Mas vamos analisar apenas as vitaminas, não os minerais. Porque algumas variáveis, como o solo no qual os alimentos são cultivados, podem fazer com a concentração de minerais varie consideravelmente, principalmente no caso dos alimentos de origem vegetal. Por isso, e também para as comparações ficarem mais simples e não muito exaustivas, vamos focar nas vitaminas.

Para cada grupo alimentar, os alimentos a seguir foram escolhidos pensando principalmente nas opções que os brasileiros tradicionalmente mais consomem. Optei por mostrar porções equivalentes a 200 g de cada alimento; quantidades menores do que isso (100 ou 50 g, por exemplo) fariam com que alguns gráficos ficassem muito pequenos, dificultando as comparações. Mais à frente vamos discutir por que comparar porções equivalente em peso, em vez de comparar os alimentos pelas calorias.

Primeiro, as frutas:






Para visualizar as imagens em tamanho real, basta clicar nelas.

O primeiro ponto a ser mencionado é que o grande mérito das frutas é a vitamina C. Quer garantir uma boa ingestão desse nutriente? Então inclua frutas na alimentação, porque muitas frutas são ricas em vitamina C. E é por isso que, por mais que a vitamina C seja tão importante quanto os outros micronutrientes, ela não é nem um pouco difícil de ser obtida pela alimentação.

As frutas amareladas, avermelhadas e alaranjadas, como mamão e goiaba, costumam apresentar boa quantidade de beta-caroteno e outros cartotenoides. As frutas e outros alimentos de origem vegetal não possuem vitamina A pré-formada em sua composição; esse nutriente é exclusivo dos alimentos de origem animal. Mesmo assim, o corpo consegue converter parte dos carotenoides em vitamina A, e por isso os gráficos mostram que as frutas e outros vegetais possuem vitamina A (mesmo que seja apenas "vitamina A", entre aspas mesmo).

E mais um ponto interessante: a diferença entre o abacate e as outras frutas. Primeiro, ele é rico em vitaminas diferentes. Segundo, ele possui uma concentração maior dos nutrientes nos quais ele é rico. Por exemplo, essa porção de abacate proporciona mais de 30% das nossas necessidades para vitamina E, vitamina K1** e vitamina B5. Tirando a vitamina C, que é de fácil obtenção, e a vitamina A, que é apenas "vitamina A", nenhuma outra dessas frutas comuns é particularmente rica em vitaminas específicas. A única exceção seria a piridoxina (vitamina B6) na banana.


**Existem duas formas desse nutriente: vitamina K1 e vitamina K2. As imagens mostram "vitamina K", mas se referem apenas à vitamina K1. A vitamina K1 está presente em grande quantidade em alguns vegetais, especialmente os de cor verde-escura. A vitamina K2, por sua vez, está presente principalmente em alimentos de origem animal (ovo, fígado) e alimentos fermentados (natto, queijo).


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Agora, as verduras:






De maneira semelhante ao que acontece com as frutas, as verduras alaranjadas, avermelhas e amareladas também costumam ser ricas em carotenoides. É por isso que vemos concentrações tão elevadas de "vitamina A" em todas as hortaliças acima, com exceção do tomate e da beterraba. "Mas o tomate não é vermelho?". Sim, mas a maioria dos carotenoides do tomate são do tipo que não pode ser convertido em vitamina A no corpo humano.

Como comentei acima, os vegetais verde-escuros costumam ser muito ricos em vitamina K, assim como mostram os gráficos. E o mesmo vale para o folato*** — com exceção da beterraba, os alimentos mais ricos nesse nutriente são todos verde-escuros.


***O termo folato se refere à forma de vitamina B9 naturalmente presente nos alimentos. Muitas pessoas chamam a vitamina B9 dos alimentos de ácido fólico, mas essa nomenclatura na verdade faz referência apenas à forma sintética dessa vitamina, encontrada na maioria dos suplementos.


E agora algumas perguntas. Além da “vitamina A” e da vitamina K1 (relativamente fáceis de serem obtidos, por serem tão presentes), além do folato, o que vemos de especial nas verduras em termos de micronutrientes? É verdade que os vegetais verde-escuros, incluídos propositalmente nessa análise para fazer contraste com as outras hortaliças, parecem se destacar um pouco mais. Mas tem alguma coisa que realmente chama a atenção, principalemnte se considerarmos apenas as verduras mais comuns (cenoura, alface, tomate e beterraba)?

Mais à frente, com os dados de outros grupos alimentares, podemos ter respostas um pouco mais claras para essas perguntas.


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Alimentos ricos em carboidratos:






Nos cereais, leguminosas, raízes e tubérculos, talvez a maioria das vitaminas estejam presentes numa concentração um pouco maior que nas frutas e verduras; se realmente for o caso, a diferença seria pequena. Nada que impressione muito.

Até temos alguns destaques: folato (vitamina B9) = feijão e lentilha; piridoxina (vitamina B6) = feijão, lentilha, batata inglesa e inhame; tiamina (vitamina B1) = feijão. Mas, ainda assim, nada que indique que cereais, leguminosas ou raízes e tubérculos são “superalimentos” do ponto de vista de micronutrientes.


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Alimentos de origem animal:






É claro que, assim como os vegetais, os alimentos de origem animal também não são ricos em todos os nutrientes. Mas veja o perfil geral. Olhe bem para a variedade e a quantidade de vitaminas que esses alimentos — especialmente o fígado, o ovo e as carnes — podem oferecer.

Não tem muito o que falar; as imagens falam por elas mesmas.

Uma sugestão para quem gosta de suplementos: por que não comer um pouco de fígado? (Sei que muita gente não gosta do sabor, mas a opção mais natural existe).

E já que estamos aqui, uma comparação especial:




Essa imagem diz tudo sobre por que não devemos consumir apenas a clara. A comparação é de 200 g de clara para 100 g de gema não só porque a gema é tão nutricionalmente superior que pode ser comparada com a metade da quantidade (o que é verdade), mas porque essa é mais ou menos a proporção (2:1) encontrada no ovo.

Do ponto de vista de micronutrientes, e até de outros nutrientes, a gema é incomparável à clara. É verdade que a clara tem seu valor, mas a gema é o coração do ovo.


Por que comparar em peso e não em calorias?

Algumas pessoas podem dizer: "Se compararmos os alimentos considerando as calorias, as frutas e verduras são mais ricas em vitaminas e minerais. Por exemplo, 200 kcal de frutas e verduras vão proporcionar mais micronutrientes do que 200 kcal de outros alimentos". Será?

Em alguns casos isso vai ser verdade. Caloria por caloria, as frutas e verduras — especialmente as verduras, as frutas nem tanto — provavelmente vão proporcionar mais vitaminas e minerais do que cereais, leguminosas, raízes, tubérculos e laticínios. Mas, mesmo comparando em termos de calorias, as frutas e verduras não necessariamente são nutricionalmente mais ricas do que ovos ou carnes (incluindo peixes e órgãos).

Vamos considerar uma porção de 500 g de frutas e verduras: laranja (150 g), maçã (150 g), alface (50 g), tomate (50 g) e cenoura (50 g). Juntos, esses alimentos proporcionam 184 kcal. Para termos o mesmo valor calórico, vamos comparar essas frutas e hortaliças a 90 g de carne bovina. Dessa vez, para termos uma análise mais completa, vamos usar valores de vitaminas e minerais na comparação:





Olhando apenas para as vitaminas, as frutas e verduras parecem levar vantagem. Mas devemos nos lembrar que a vitamina C e a "vitamina A" são facilmente obtidas porque estão amplamente distribuídas nos alimentos desses grupos; até mesmo pequenas porções de alimentos frutas e verduras normalmente são capazes de suprir nossas necessidades. Se não considerarmos essas duas vitaminas, é difícil dizer se as frutas e hortaliças são mais ricas que a carne bovina, até porque os nutrientes mais presentes em cada um deles são diferentes. E isso traz um ponto importante de ser lembrado: a importância, em termos de micronutrientes, de combinarmos alimentos de origem animal e de origem vegetal. E isso ajuda a explicar também porque somos uma espécie onívora.

Olhando para os minerais, as frutas e verduras parecem apresentar mais nutrientes em quantidades moderadas, mas a carne bovina parece proporcionar mais nutrientes em quantidades elevadas. Novamente, estamos falando de nutrientes diferentes. Nesse caso também não dá para afirmar que as frutas e hortaliças são melhores que as carnes, ou vice-versa; são diferentes, e até mesmo complementares, em termos de minerais.

Esse exemplo mostra como as comparações nem sempre são fáceis. De qualquer forma, o que eu queria trazer nessa discussão é que, mesmo quando comparamos em termos de calorias, as frutas e verduras não necessariamente levam vantagem em relação a outros alimentos. Mesmo se levassem, a diferença não seria grande o suficiente para considerarmos as frutas e verduras como os alimentos mais ricos em micronutrientes, enquanto deixamos um pouco de lado os outros grupos alimentares.

Mas a grande questão nem é essa. A verdade é que, por mais que as frutas e hortaliças até possam ser mais ricas do que alguns dos grupos alimentares quando comparamos caloria por caloria, a maioria das pessoas consome quantidades pequenas desses alimentos. Não é fácil encontrar uma pessoa que consome uma média de 500 g de frutas e verduras diariamente, mas é fácil achar pessoas que consomem 200 g ou mais de carne todos os dias. Assim como é relativamente fácil encontrar pessoas que consomem 200 g ou mais de cereais (arroz), leguminosas (feijão), ovos, raízes, tubérculos ou laticínios.

Se as pessoas consumissem 800 ou 1000 g de frutas e verduras por dia, poderíamos começar a pensar nas comparações em termos de calorias. Mas essa não é a nossa realidade.

Peso por peso, as frutas e verduras não contribuem tanto assim para a nossa ingestão de vitaminas e minerais. Em primeiro lugar, porque esses alimentos simplesmente não possuem quantidades tão elevadas da maioria dos micronutrientes. Em segundo lugar, porque, mesmo que fossem super concentradas em vitaminas e minerais, frutas e hortaliças são consumidas em quantidades relativamente baixas pela maioria das pessoas.


Considerações (semi)finais

Mesmo com dados e informações disponíveis, sabemos menos do que achamos que sabemos. Imagine o mundo de coisas que não sabemos; não só na nutrição, mas em tudo. Antes de acharmos que sabemos muito, temos que reconhecer que sabemos pouco. Esse caso das frutas e verduras é só um exemplo entre vários outros que existem.

A maior parte do que tinha para ser discutido foi falado ao longo do texto. Por isso, gostaria de resumir da seguinte forma: as frutas e verduras não são as principais fontes de vitaminas e minerais na alimentação da maioria das pessoas. Na verdade, considerando as porções e as variedades habitualmente consumidas desses alimentos, as frutas e hortaliças provavelmente são os grupos alimentares que menos contribuem para o total de vitaminas e minerais que boa parte (ou até a maioria) das pessoas no mundo ingere.

No entanto, se você tem uma opinião sobre algum ponto que eu possa ter deixado de considerar nessa discussão, e que talvez seja importante colocar em perspectiva, por favor compartilhe. A ideia aqui não é falar mal de frutas e hortaliças, mas sim mostrar que a realidade sobre a densidade nutricional dos alimentos é, no mínimo, consideravelmente diferente do que a maioria das pessoas acredita ser.

E não podemos esquecer: os alimentos são muito mais do que vitaminas e minerais, assim como são muito mais do que calorias, carboidratos, gorduras ou proteínas. A contribuição dos alimentos para o equilíbrio do organismo pode vir de várias formas diferentes, como pela presença de compostos considerados como antioxidantes e anti-inflamatórios.

Afinal, mesmo as frutas e hortaliças não sendo tão relevantes em micronutrientes, elas ainda assim são extremamente importantes para a saúde como um todo. Será?

Podemos ter tanta certeza?


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quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Sono: essencial para a composição corporal




Entre os fatores mais importantes quando falamos sobre saúde, o sono é provavelmente o mais subvalorizado. Sempre nos lembramos da alimentação e dos exercícios, mas nos esquecemos de quase tudo que foge a eles. Toda hora ouvimos sobre novas dietas e tipos de exercícios, mas ainda ouvimos muito pouco sobre a importância do sono — e, quando ouvimos, geralmente é de maneira superficial.

Felizmente, o cenário tem mudado um pouco. Mesmo que num ritmo devagar, a importância do sono tem sido cada vez mais reconhecida. Temos visto mais profissionais de saúde, por exemplo, perguntando sobre quantidade e qualidade do sono de seus pacientes. Além disso, houve nos últimos anos um aumento considerável nos estudos relacionados ao sono e à regulação do ciclo circadiano.

À medida que a ciência avança, de pouco em pouco vamos entendendo melhor como o sono influencia a saúde. E esse ganho de conhecimento na área tem sido um fator relevante para o reconhecimento do sono como um dos pilares de uma vida saudável. Mas, mesmo sendo importante, a ciência do sono é só uma parte dessa história. A verdade é que todos sabem que um sono de qualidade é fundamental, mesmo com um mundo gigantesco ainda a ser explorado pela ciência. Por experiência própria, por motivos variados, todos nós passamos por períodos de noites mal dormidas, e por isso sabemos o impacto negativo que o sono de baixa qualidade pode ter sobre nossa saúde e nosso bem-estar.

O conhecimento científico sobre o sono ajuda, mas existe um componente ainda mais fundamental: ter consciência sobre a importância de um sono de qualidade. Só damos a devida atenção ao sono quando começamos a perceber, na prática, como ele realmente afeta nossa saúde. Isso se assemelha ao que acontece com a alimentação em muitos casos. Enquanto somos jovens e o corpo consegue se adaptar a uma alimentação potencialmente prejudicial, muitas pessoas não dão tanto valor a uma dieta saudável. Mas, quando problemas relacionados à alimentação começam a aparecer — como acúmulo de gordura corporal, alterações metabólicas, doenças crônicas —, a consciência sobre a importância da alimentação normalmente começa a mudar.

O problema é que as consequências mais complicadas de um sono de baixa qualidade, assim como de uma alimentação ruim, muitas vezes demoram para aparecer. Além disso, em muitos casos os problemas que surgem podem parecer não ter relação alguma com o sono. Assim, temos um cenário com condições que dificultam que o sono seja devidamente reconhecido como um componente realmente importante na saúde — talvez o mais importante.

Mas o sono também ficou de lado nas últimas décadas por outro motivo. Há muito tempo, a maioria das pessoas dá mais valor à aparência física do que à saúde do corpo. Quando se fala sobre alimentação e exercícios, muitas pessoas querem saber como melhorar a composição corporal por questões estéticas, com a saúde como objetivo secundário (ou nem isso). É por isso que falamos muito sobre alimentação e atividade física: acreditamos que esses são os dois principais fatores que influenciam a gordura corporal, a massa muscular e a aparência física do corpo como um todo.

E é por esse mesmo motivo que esquecemos do sono: não sabemos, ou nem imaginamos, como o sono pode moldar nossa composição corporal. Apesar de subvalorizarmos o sono, até sabemos que ele influencia nossa saúde como um todo, mas ainda temos a tendência de achar, mesmo que inconscientemente, que o sono não é importante para a composição corporal. Será que não?


Associação entre sono e obesidade

O último trabalho científico de revisão sistemática a avaliar a relação entre sono e excesso de peso mostrou que existe uma associação clara entre as duas variáveis: crianças e adultos que dormem poucas horas de sono têm maior chance de apresentarem obesidade. Nessa análise, os autores consideraram “pouco sono” como < 10 horas/dia para as crianças (com idade até 10 anos, na maioria dos estudos) e < 5 horas/dia para os adultos.

Nesse caso, estamos falando apenas de estudos do tipo transversal, que são bem limitados em nos informar sobre a relação de causalidade entre as variáveis estudadas. Esses estudos só medem um único ponto no tempo, e determinam a associação entre as variáveis apenas naquele exato momento. Assim, mesmo que exista uma relação de causa e efeito entre as variáveis, não saberíamos se é a quantidade de sono reduzida que leva à obesidade ou se é o ganho de peso que prejudica o sono. Mas é claro que não podemos nos esquecer que também existe a possibilidade de essas associações serem meras coincidências. Por exemplo, se pessoas ansiosas comem muito e dormem pouco, as variáveis sono e obesidade podem estar relacionadas, mas nesse caso não seria uma relação de causalidade: a ansiedade seria um fator de confundimento, mediando a associação entre sonos e obesidade.

Mas, além dos estudos transversais, temos também os estudos de coorte para nos ajudar a entender essa relação. Novamente, a associação é bem clara e na mesma direção: prospectivamente, uma menor quantidade de sono está diretamente relacionada ao ganho de peso. Mais uma vez, tanto em crianças como em adultos. Além disso, a associação parece ser dose-dependente: quanto menos horas de sono, maior o risco de ganho de peso.

Esses resultados são mais expressivos, porque estamos falando de estudos de coorte, que levam em consideração o efeito do tempo ao estudar a relação entre nossas variáveis de interesse. Porém, justamente por se tratarem de estudos de coorte, que também são estudos observacionais, continuamos com a ressalva de que não temos base suficiente para afirmar que a dormir menos horas é uma causa do ganho de peso. Assim como para os estudos transversais, ou qualquer tipo de estudo observacional, outras variáveis poderiam estar mediando a associação entre sono, ganho de peso e obesidade.


Restrição de sono, gasto energético e ingestão calórica

Em ensaios clínicos, nos quais os grupos de participantes que passam pela privação de sono normalmente dormem 4 a 5 horas por noite, por um período de alguns dias ou algumas semanas, já foi demonstrado consistentemente que a restrição de sono não leva a uma redução no gasto energético. Na verdade, quando ocorrem alterações no gasto energético total, a tendência é de haver um leve aumento no gasto energético com a restrição de sono. Sendo assim, mesmo que a associação entre baixa quantidade de sono e ganho de peso seja uma relação de causalidade, a princípio podemos descartar mudanças no gasto energético como um fator relevante.

Por outro lado, as evidências são bem consistentes em mostrar que a privação de sono possui influência direta sobre a ingestão calórica. Quando colocados em situações de restrição de sono, os participantes dos estudos consomem, em média, 385 kcal/dia a mais do que o seu consumo habitual. Independentemente de outros fatores, essa maior ingestão energética merece destaque, porque é uma quantidade de calorias suficiente para levar ao acúmulo de gordura corporal no curto e médio prazo. Como exemplo disso, um estudo de 2013 mostrou que após 5 dias de privação do sono, com 5 horas dormidas por noite, os participantes apresentaram um ganho de peso de 0,8 kg justamente por causa da maior ingestão de calorias. E se o ganho de peso pode acontecer depois de apenas alguns dias de restrição de sono, fica a pergunta: qual seria o impacto de semanas, meses ou anos de noites mal dormidas, como é o caso para muitas e muitas pessoas ao redor do mundo?

Assim, embora o gasto energético praticamente não seja afetado pela privação de sono, sabemos que o consumo de calorias geralmente é. Se uma “desaceleração do metabolismo” não poderia explicar a associação que existe entre poucas horas de sono e ganho de peso, a maior ingestão calórica pode.


Sono e composição corporal além das calorias

Apesar de a energia que consumimos a partir dos alimentos certamente ser o fator mais importante na regulação do peso e da gordura corporal, as calorias não são o único determinante desses processos. O caso do jejum intermitente sem restrição calórica e o caso das calorias pela manhã são bons exemplos disso.

A regulação da composição corporal não depende somente das calorias que ingerimos porque o que conta não é apenas o quanto de energia entra ou sai do organismo, mas também como essa energia é percebida e utilizada pelo corpo. Para ficar um pouco mais claro, temos mais dois bons exemplos dessa questão.

O primeiro diz respeito aos exercícios. É verdade que os exercícios levam a um maior gasto energético durante sua prática, e é justamente por isso que as pessoas pensam neles como essenciais para o emagrecimento. Afinal, quanto mais energia gastamos ao longo do dia, maior é a perda de peso esperada. Mas a complexidade da nossa fisiologia vai muito além disso. Dependendo do tipo de atividade e de como essa atividade é praticada, o corpo pode se tornar um sistema mais eficiente do ponto de vista energético. Isso quer dizer que, com o tempo, o organismo pode passar a “desperdiçar” cada vez menos calorias, direcionando mais energia para a produção de ATP e dissipando menos energia na forma de calor. Nesse caso, devido ao aumento constante na demanda das células musculares por energia, o próprio exercício funcionaria como um estímulo adaptativo, sinalizando para que o corpo se torne mais eficiente no uso das calorias.

Além disso, temos o exemplo das dietas low-carb, cujos efeitos dependem do estado metabólico das pessoas que as consomem. Em indivíduos metabolicamente saudáveis, as dietas low-carb exercem basicamente o mesmo efeito que as dietas convencionais, mais ricas em carboidratos, sobre o peso e a saúde metabólica. Por outro lado, em pessoas com resistência à insulina ou síndrome metabólica, as dietas low-carb levam a um maior emagrecimento e a resultados mais positivos em parâmetros metabólicos, quando comparadas à maioria das outras dietas. Por quê? Basicamente porque a diferente proporção de nutrientes das dietas low-carb, especialmente a restrição de carboidratos junto à maior ingestão de proteínas, normalmente faz com que o corpo se sinta menos sobrecarregado do ponto de vista energético, saindo do modo “excesso de energia”.

Esses dois exemplos mostram como o estado metabólico do organismo é capaz de ditar como as calorias são processadas. E algo semelhante pode acontecer com o sono. Assim como acontece no ganho de peso, a privação de sono também influencia negativamente nosso estado metabólico. Olhando para os estudos conduzidos até hoje, sabemos, por exemplo, que 60 horas ou até mesmo 24 horas seguidas de restrição total de sono reduzem nossa sensibilidade à insulina. De maneira semelhante, duas semanas ou até mesmo uma semana de restrição parcial de sono, com cerca de 5 horas dormidas por noite, também levam ao aumento no grau de resistência à insulina. Na verdade, uma única noite de privação parcial de sono (4 horas dormidas) já é suficiente para causar esse tipo de alteração metabólica.

E esse não é um efeito transitório, porque pessoas que habitualmente dormem menos horas de sono possuem maior tendência de apresentar resistência à insulina, quando comparadas a pessoas que dormem mais de 6 horas por noite. Do outro lado, um estudo de 2015 mostrou que duas semanas de sono adequado controlado, mais seis semanas de orientação sobre como melhorar o sono, fez com que participantes com restrição crônica de sono apresentassem maior quantidade de horas dormidas, melhor qualidade do sono e melhora da sensibilidade à insulina. Isso mostra que as alterações metabólicas negativas causadas pela restrição de sono são reversíveis, e que com um sono adequado, depois de um tempo relativamente curto, o estado metabólico normal do corpo pode ser recuperado.

Mas, além do número de horas de sono, o momento em que dormimos também é um importante determinante do nosso estado metabólico. Mesmo dormindo uma quantidade de horas que seria suficiente para praticamente qualquer pessoa (> 8 horas/dia), o simples fato de dormirmos pela manhã, em vez de dormirmos durante a noite, pode alterar nossa sensibilidade à insulina e levar ao aumento na inflamação. E isso faz sentido, porque somos animais diurnos: evoluímos para dormir durante a noite; quando isso não acontece, o corpo percebe que estamos indo contra nossa própria natureza.

Assim, fica claro que o alinhamento do nosso ciclo circadiano, com uma quantidade de sono suficiente e com o momento certo para dormirmos (durante a noite), é um fator importante para a manutenção de um estado metabólico saudável. E é por isso que, quando acontecem alterações nesse equilíbrio, quando nosso estado metabólico é modificado por questões relacionadas ao sono, podemos imaginar que as calorias que ingerimos podem ser metabolizadas de formas diferentes do que normalmente acontece — assim como pode acontecer para dietas low-carb em pessoas com resistência à insulina.


Durma bem para emagrecer bem

Aqui está a cereja do bolo: um estudo que mostra como o sono pode afetar a composição corporal de maneira independente das calorias.

Em 2010, Nedeltcheva e colaboradores conduziram um estudo para avaliar como a privação de sono influencia o metabolismo energético e a perda de peso durante um período de restrição calórica. Para isso, recrutaram adultos com sobrepeso e obesidade, que relatavam dormir em entre 6,5 e 8,5 (média de 7,7) horas de sono por noite.

Cada um dos participantes passou pelos dois períodos do estudo, cada um com duração de duas semanas: 1) sono normal = 8,5 horas/noite; 2) restrição de sono = 5,5 horas/noite. A dieta foi individualizada para conter uma quantidade de calorias equivalente a 90% da taxa metabólica de repouso de cada pessoa. Além disso, a dieta foi estritamente controlada, com todos os alimentos pesados e ofertados pela equipe de pesquisa.

Além de muito bem controlado, o estudo contou com o uso de métodos padrão-ouro, como água duplamente marcada (discutida aqui) para o cálculo do gasto energético e DXA para as medidas de composição corporal. Do ponto de vista técnico e científico, esse foi um trabalho realmente muito bom, e até por isso foi publicado na Annals of Internal Medicine, uma revista científica bem importante.

A ingestão calórica média foi de 1450 kcal/dia, tanto nas duas semanas de 8,5 horas de sono/noite como nas duas semanas de 5,5 horas de sono/noite. Como resultado, a perda de peso foi semelhante em ambos os períodos: média de 3,0 kg.

Mas aqui vem a parte mais interessante. Durante o período de sono adequado, os participantes perderam 1,5 kg de gordura corporal e 1,4 kg de massa magra. Por outro lado, ao longo do período de restrição de sono, a perda de gordura corporal foi de apenas 0,6 kg, enquanto a perda de massa magra foi de 2,4 kg.




Além disso, nas duas semanas de restrição de sono, os participantes relataram mais fome, o que vai de acordo com o nível sanguíneo mais elevado de grelina — um dos hormônios que sinalizam fome no organismo — durante esse período. A maior sensação de fome a princípio não exerceu efeito direto sobre a alimentação dos indivíduos nesse estudo, justamente porque a alimentação foi totalmente controlada pelos pesquisadores. Porém, num contexto real do dia a dia dessas pessoas, a maior fome provavelmente prejudicaria ainda mais o processo de emagrecimento durante a restrição de sono.


Considerações finais

A baixa qualidade do sono não está apenas associada à obesidade, porque estudos clínicos mostram que existem fatores capazes de explicar uma relação de causalidade entre restrição de sono e ganho de peso. O exemplo mais claro, verificado em diversos estudos, é que a restrição de sono contribui diretamente para um maior consumo de calorias, numa quantidade suficiente para levar ao acúmulo de gordura corporal pelo menos no curto e médio prazo.

Além disso, como discutido no estudo de Nedeltcheva, a privação de sono parece influenciar negativamente a resposta do corpo à restrição energética, levando o organismo a potencialmente perder mais massa magra do que gordura corporal durante a perda de peso. E isso não só mostra que as calorias não são todas iguais, mas também que um sono em quantidade e qualidade suficientes parece realmente ser essencial para mantermos uma composição corporal adequada.

O efeito negativo que a restrição de sono possui sobre o maior consumo de calorias deveria ser suficiente para darmos mais importância ao sono. Se ainda não fazemos isso, saber que a privação de sono pode prejudicar a composição corporal, independentemente das calorias, é mais uma razão para termos mais consciência sobre a qualidade do nosso sono, além de ser mais uma bela demonstração da complexidade do corpo humano (e da vida como um todo).

Mas é claro que nem tudo está respondido. Como ainda estamos aprendendo, algumas dúvidas permanecem. Para mim, as principais são:

Se a restrição de sono é capaz de desfavorecer a perda de gordura corporal durante o processo de emagrecimento, como será que ela afeta pessoas que ingerem mais calorias do que suas necessidades energéticas? Será que essas pessoas estão acumulando ainda mais gordura corporal, numa quantidade que vai além do que as calorias consumidas a princípio forneceriam? A privação de sono generalizada — nesse mundo sempre preocupado em ter mais e fazer mais, sempre acelerado — poderia ajudar a explicar o aumento exponencial nas taxas de sobrepeso e obesidade visto nos últimos anos?



quarta-feira, 7 de junho de 2017

Para emagrecer, você escolheria consumir mais calorias de manhã ou à noite?




Quando se fala sobre emagrecimento, é difícil não falar sobre calorias. Porque, apesar de ser uma medida de calor na definição original, as calorias são sinônimo de energia quando entramos no campo da nutrição. E energia tem tudo a ver com emagrecimento e composição corporal.

É por isso que temos a velha máxima: se alguém consome mais calorias (energia) do que o corpo gasta, essa pessoa ganha peso. E vice-versa: uma ingestão de calorias inferior ao gasto energético leva à perda de peso. Essa, a princípio, é a dinâmica do organismo, armazenando ou liberando energia, principalmente da gordura armazenada no tecido adiposo, de acordo com a demanda e a oferta de calorias.

Mas, como se pode imaginar, não é assim que o próprio corpo vê as coisas. Porque ele não consegue contar calorias da maneira como nós fazemos. Nosso organismo trabalha de um jeito um pouco diferente. Sua forma de regular a entrada, o fluxo e a utilização de energia depende de sensores e mecanismos específicos e coordenados, orquestrados por diversas proteínas, substratos energéticos e sistemas corporais diferentes.

O corpo faz essa regulação energética muito melhor do que a nossa simples contagem de calorias. Mesmo assim, não devemos descartar a ideia das calorias.

Apesar de suas limitações, e das nossas limitações como seres humanos na aplicação do conceito, as calorias são bem úteis em diversas situações. Não somos precisos como o corpo humano em perceber as flutuações energéticas, mas podemos usar as calorias dos alimentos como ponto de partida para sabermos como a alimentação influencia a composição corporal das pessoas, como na perda de gordura corporal ou no ganho de massa muscular.

É por isso que, desde que surgiu a ideia de se quantificar as calorias nos alimentos, entre os séculos XIX e XX, fala-se muito sobre elas. E faz sentido: se pelo menos parte da regulação do peso acontece pela forma como o organismo trabalha a energia proveniente da alimentação, falar sobre calorias acaba se tornando algo importante.

Mas, como costumo falar por aqui, as calorias em si não são tudo quando o assunto é emagrecimento. Não podemos achar que a regulação energética do corpo, e consequentemente a composição corporal das pessoas, depende apenas das calorias ingeridas e dispendidas. Existem vários exemplos de como a distribuição das refeições ao longo do dia, assim como o consumo de nutrientes específicos, pode mudar o balanço energético do organismo — de forma praticamente independente das calorias da alimentação.

Por exemplo, existem protocolos de jejum intermitente sem restrição calórica que levam ao emagrecimento. Se as calorias fossem o único fator verdadeiramente relevante quando o assunto é composição corporal, seria impossível uma intervenção nutricional sem restrição calórica levar ao emagrecimento. Mas acontece. Isso quer dizer que a regulação dos níveis de energia do corpo, assim como onde a energia é armazenada e como ela é utilizada, depende de outros fatores que vão além das calorias.

Além disso, temos também o efeito das dietas low-carb em pessoas com resistência à insulina e síndrome metabólica. Especificamente nesses pacientes, uma alimentação com restrição de carboidratos leva a uma maior perda de peso e gordura corporal, quando comparada a dietas mais ricas em carboidratos contendo a mesma quantidade de calorias. Assim como no caso do jejum intermitente sem restrição calórica, pode-se dizer que esse é um resultado impressionante, porque a princípio estaria quebrando leis de termodinâmica e conservação de energia da física.

E essa é apenas parte das evidências. Porque tem mais.

Hoje eu gostaria de falar sobre mais um desses casos que mostram que a questão quantitativa das calorias não é a única coisa que conta. Sobre um tópico que, até aqui, tem ficado “escondido”. Provavelmente porque a própria literatura científica ainda não deu muita atenção a ele (para ser justo, é uma ideia que tem sido explorada há um tempo relativamente curto). Consequentemente, pouquíssimas pessoas, em geral, falam sobre esse assunto.

Se você é uma pessoa interessada em emagrecimento, fique por aqui. Veja como a fisiologia humana é complexa. E impressionante.


O que você consome em cada horário?

Quando falamos sobre horários ou momentos de se alimentar, as duas ideias mais levantadas, discutidas e comentadas são:


1) Qual é o melhor intervalo de tempo entre as refeições? Comer de 3 em 3 horas? Jejum intermitente? Mais ou menos refeições no dia, com mais horas ou menos horas entre elas?

2) Comer carboidrato à noite engorda? Algumas pessoas dizem que sim, outras dizem que não. Meu amigo disse que parou de comer e emagreceu, mas minha nutricionista disse que isso é um mito. E agora?


O primeiro tópico, sobre frequência alimentar, é simples.

Apesar de muita gente ainda difundir a ideia de que comer de 3 em 3 horas “acelera o metabolismo”, diminui a fome e potencializa o emagrecimento, a literatura científica já mostrou que nada disso é realmente verdade. Apesar do cenário estar mudando aos poucos, o “comer de 3 em 3 horas” permaneceu por muito tempo como uma verdade absoluta na nutrição — assim como foi (ou é?) o caso do índice glicêmico.

Como eu nunca escrevi um texto dedicado especificamente à questão da frequência alimentar, vou esclarecer alguns pontos aqui mesmo nesse texto.

Juntando as evidências sobre o tema, os estudos já mostraram claramente que fazer mais ou menos refeições, com intervalos maiores ou menores entre elas, praticamente não faz diferença alguma. Alguns estudos mostram resultados um pouco melhores para uma frequência alimentar menor, enquanto alguns outros estudos já verificaram pequenos benefícios para uma frequência alimentar maior. Mas a maioria dos trabalhos científicos apresenta resultados nulos — ou seja, benefícios iguais em fazer um número maior ou menor refeições ao longo do dia.

Isso significa que a frequência alimentar — número de refeições e intervalo entre elas — não é um fator muito relevante, desde que as calorias sejam as mesmas para as dietas sendo comparadas. Algumas pessoas se adaptam melhor a um número maior de refeições; outras pessoas preferem um intervalo mais longo entre elas. O mais importante é adequar a frequência alimentar às preferências individuais de cada pessoa.

O segundo tópico, sobre a influência da ingestão noturna de carboidratos sobre a composição corporal, é um pouco mais complexo.

Até existe um bom número de evidências que testaram se, quando o assunto é emagrecimento, seria melhor consumir mais carboidratos à noite ou em outros horários. O problema é que virtualmente todos os sites e blogs que falam sobre o assunto nunca citam um número razoável das evidências que temos disponíveis (geralmente citam, no máximo, dois ou três estudos). Isso não é suficiente para mostrar o que a totalidade das evidências científicas já verificaram, e pode gerar análises enviesadas ou incompletas sobre o tema.

Além disso, por ser um assunto um pouco mais emaranhado, e que depende em parte dos resultados dos estudos que serão discutidos como foco central desse texto de hoje, vou deixar para falar sobre o tema “carboidrato à noite engorda?” em outro momento. Até porque esse tópico vai além da questão do emagrecimento, passando também pela influência da distribuição de carboidratos ao longo do dia em parâmetros metabólicos e de saúde.

Então agora sim podemos voltar ao nosso tema central, que não é carboidratos à noite e nem comer de 3 em 3 horas.

A pergunta que eu gostaria de responder é:

O que acontece se você mantiver constante a quantidade total de calorias e o número de refeições de uma dieta, mas alterar a forma como essas calorias são distribuídas ao longo do dia?


Timing de calorias

Já faz um tempo que o conceito de timing ficou bem conhecido na nutrição. A ideia é você aproveitar o momento “certo” para ingerir determinados nutrientes ou alimentos — o horário em que o corpo estaria no estado mais favorável para absorver ou processar o que é consumido.

É muito comum falarmos sobre timing quando nos referimos ao consumo de nutrientes na prática de exercícios, especialmente no período pós-treino. Talvez você já tenha ouvido falar da “janela de oportunidade”. No contexto da musculação, por exemplo, essa janela é considerada como o momento ideal, normalmente de 30 a 60 minutos após o exercício, para se consumir proteínas. Dessa forma, estaríamos maximizando os efeitos anabólicos não apenas do exercício, mas também das proteínas.

A existência da janela de oportunidade como um fenômeno real é questionável, e não temos espaço para discutir sobre ela nesse texto. Mas esse é bom um exemplo do conceito de timing de nutrientes. De forma semelhante, a questão de consumir ou não carboidratos à noite também é um exemplo: pensando em emagrecimento, existiria um timing ideal para a ingestão desse nutriente?

Perceba que, em ambos os casos, estamos falando de nutrientes: proteínas e carboidratos. Algo que não se fala é sobre o timing das calorias.

Será que o momento de ingerir as calorias ao longo do dia é importante para o emagrecimento? Se sim, como isso acontece?

É essa parte que nos interessa agora.


Para emagrecer, mais calorias à noite ou de manhã?

No começo de 2013, Jakubowicz e colaboradores publicaram o primeiro estudo que se propôs a responder à seguinte pergunta: mantendo fixa a quantidade de calorias de uma dieta, o horário de consumir essas calorias faz diferença?

Para isso, os pesquisadores recrutaram 93 mulheres adultas com síndrome metabólica, mas sem o diagnóstico de diabetes, para participarem do estudo. Dessas, 74 completaram as 12 semanas de duração da pesquisa.

As participantes foram divididas em dois grupos: 1) dieta “café da manhã” (BF); e 2) dieta “jantar” (D). As duas dietas foram prescritas para perda de peso, com um total de aproximadamente 1400 kcal/dia. Ambas eram compostas pelos mesmos alimentos, e por isso também continham a mesma quantidade de proteínas, carboidratos e gorduras.

A diferença entre as dietas estava na distribuição das calorias ao longo do dia. Na dieta “café da manhã” (BF), a maioria das calorias era consumida no café da manhã (50% das kcal), seguido do almoço (36% das kcal) e do jantar (14% das kcal). Na dieta “jantar”, as calorias do café da manhã e do jantar foram invertidas, com as mulheres consumindo a maior parte das calorias na última refeição.

Depois das 12 semanas de intervenção, a perda de peso no grupo BF foi mais do que o dobro em relação ao grupo D: -8,7 kg (-11% do peso inicial) x -3,6 kg (-4% do peso inicial). Além disso, é possível perceber que as participantes que consumiram mais calorias no jantar vinham apresentando uma tendência de manutenção e até reganho de peso nas últimas semanas do estudo, enquanto que as mulheres que ingeriram mais calorias no café da manhã mantiveram uma tendência de redução do peso corporal (imagem A, abaixo):




Apesar dos pesquisadores não terem aferido parâmetros mais diretos de gordura corporal, eles mediram a circunferência da cintura, que ainda sim é uma medida indireta muito consistente com os níveis de gordura corporal. Novamente, o grupo “café da manhã” levou vantagem, com uma redução de -8,7 cm (-7,9%) na circunferência da cintura, contra -3,6 cm (-3,2%) no grupo “jantar” (imagem B, acima).

Tanto a insulina basal como o HOMA-IR, ambos marcadores do grau de resistência à insulina, apresentaram reduções significativas do ponto de vista clínico e estatístico no grupo D (-29% e -32,5%, respectivamente). Mas as reduções foram consideravelmente maiores no grupo BF: -51% para a insulina basal e -57% para o HOMA-IR.




Os resultados desses marcadores metabólicos foram tão importantes no grupo BF que, usando o HOMA-IR como padrão classificatório, as mulheres estariam fora da classificação de “resistência à insulina” ou “sensibilidade à insulina alterada”.

E isso foi visto também em outro marcador avaliado que reflete bem, mas de forma indireta, o grau de resistência à insulina de uma pessoa: os triglicerídeos. Enquanto o grupo BF apresentou uma diminuição de 80,3 mg/dL (-33,6%), o grupo D demonstrou um aumento de 26 mg/dL (+14,6%) nesse parâmetro.




Além de todos esses resultados positivos, as mulheres do grupo “café da manhã” ainda relataram menor sensação de fome e maior sensação de saciedade do que as participantes do grupo “jantar” — tanto ao longo do dia (entre as refeições) como para as dietas como um todo (12 semanas de duração do estudo).

***

Um ano depois, mais um estudo mostrou resultados semelhantes. Apesar de ter a mesma duração (3 meses), esse trabalho contou com um número de participantes menor: 36 mulheres, que apresentavam obesidade, foram do início até o final da pesquisa.

As participantes do estudo foram dividias em dois grupos: 1) intervenção, com mais calorias no começo do dia (G1); e 2) controle, com as calorias mais balanceadas entre a primeira e a segunda metade do dia (G2).

Para o grupo G1, a distribuição de calorias foi: 70% no café da manhã + lanche da manhã + almoço, enquanto que lanche da tarde + jantar ficaram com os outros 30%. Já o grupo G2 contou com a seguinte distribuição calórica: 55% na primeira parte e 45% na segunda parte do dia. Nos dois casos, as participantes consumiram dietas com restrição de 600 kcal em relação às suas necessidades energéticas.

Após os 3 meses do estudo, as mulheres que consumiram mais calorias na parte da manhã (G1) apresentaram maior perda de peso do que as mulheres do outro grupo (G2): -8,2 kg x -6,5 kg, respectivamente. Felizmente, os pesquisadores aferiram a gordura corporal (por DXA, padrão-ouro) nesse trabalho. Assim como para o peso total, houve maior perda de gordura corporal no grupo G1 (-6,8 kg) quando comparado ao grupo G2 (-4,5 kg) — e, acompanhando essa maior redução na gordura corporal, houve também uma maior diminuição na circunferência da cintura no grupo G1.




Se analisarmos as mudanças na composição corporal como um todo, é possível perceber que a perda de gordura no grupo G1 não foi maior somente em números absolutos, mas também em termos proporcionais. Isso significa que houve também uma menor perda (ou maior manutenção) de massa magra nas pessoas que consumiram mais calorias na parte da manhã. Subtraindo a gordura corporal do peso total, verifica-se que a redução de massa magra no grupo G1 foi de -1,4 kg, contra -2,0 kg no grupo G2.

Esse resultado para a massa magra é muito interessante do ponto de vista clínico, principalmente considerando que a perda de gordura corporal foi maior no grupo G1. Porque o mais comum de se acontecer é o seguinte: quanto maior é a perda de peso total, maior é a perda de gordura e maior também é a perda de massa magra. Assim, quando temos uma intervenção que leva a uma maior redução de gordura corporal, mas com uma menor diminuição da massa magra, isso é bem significativo.

Apesar de não ter sido detectada uma significância estatística para os níveis de insulina basal entre os grupos, as diferenças foram significativos do ponto de vista clínico, com resultados mais positivos para as mulheres que consumiram 70% das calorias na primeira parte do dia: -6,7 U/mL (-41%), contra -1,8 U/mL (-10%) para as mulheres que consumiram 55% das calorias na primeira parte do dia. Como resultado, a redução no parâmetro de HOMA-IR foi quase o dobro para o grupo G1 em relação ao grupo G2 (-1,37 x -0,74).

***

Um ano antes do primeiro estudo de Jakubowicz et al. (2013) citado acima, o mesmo grupo de pesquisadores já havia observado resultados semelhantes, mas com implicações para períodos prolongados com essas intervenções.

Eles compararam duas dietas: 1) mais calorias de manhã, com café da manhã rico em carboidratos e proteínas (HCPb)*; e 2) mais calorias à noite, com uma dieta low-carb (LCb)*. As dietas dos homens foram calculadas para conter 1600 kcal/dia, enquanto para as mulheres esse valor foi de 1400 kcal/dia.


*As siglas se referem ao café da manhã consumido por cada grupo.
   - HCPb = high-carbohydrate and protein breakfast
   - LCb = low-carbohydrate breakfast


O estudo incluiu mulheres e homens com obesidade, e teve duração de 32 semanas. As primeiras 16 semanas foram com o seguimento ativo das dietas. As 16 semanas subsequentes foram um período de manutenção, em que os pacientes poderiam escolher mais livremente o quanto eles queriam seguir de seus respectivos planos alimentares.

Nas primeiras 16 semanas, os dois grupos apresentaram reduções semelhantes no peso e na circunferência da cintura. Nesse ponto, temos resultados que não seguiram os resultados observados nos dois estudos discutidos anteriormente. E existem pelo menos duas possíveis razões que explicam por que o grupo que consumiu mais calorias na parte da manhã (grupo HCPb), durante a fase de intervenção ativa, não apresentou uma perda de peso superior.

A primeira explicação seria porque o outro grupo (LCb), com mais calorias à noite, consumiu uma dieta low-carb, e nós sabemos que a restrição de carboidratos é especialmente eficaz para o emagrecimento em pessoas que apresentam resistência à insulina — como era o caso dos participantes desse estudo. A segunda razão seria porque a dieta low-carb teve uma quantidade total de proteínas superior** à dieta com mais calorias pela manhã (LCb: 190 g; HCPb: 160 g), e nós sabemos que a maior ingestão de proteínas também é um fator que contribui diretamente com o emagrecimento.


**A quantidade de proteínas no café da manhã do grupo HCPb era maior (45 x 30 g), mas a quantidade total de proteínas na dieta foi superior no grupo LCb.


Mas o ponto mais interessante do estudo não é sobre o período de intervenção ativa, e sim o que aconteceu durante o período de manutenção. Nas últimas 16 semanas, o grupo HCPb (mais calorias de manhã) apresentou resultados consideravelmente mais positivos para os seguintes parâmetros avaliados:

     - Glicemia de jejum: 84 mg/dL x 96 mg/dL
     - Insulina basal: 8,9 U/mL x 23,7 U/mL
     - HOMA-IR: 1,6 x 5,9
     - Triglicerídeos: 122 mg/dL x 175 mg/dL

Além disso, os participantes que consumiram mais calorias pela manhã também relataram uma vontade subjetiva muito menor de consumir alimentos ricos em gorduras, alimentos ricos em carboidratos e fast-food. Na maior parte dos grupos alimentares avaliados, o desejo alimentar no grupo HCPb foi a metade do que foi apresentado pelo grupo LCb.

E isso ajuda a explicar o que aconteceu com o peso dos participantes. Embora a perda de peso tenha sido a mesma nas primeiras 16 semanas na fase de intervenção direta, isso mudou no período de manutenção. Nessas últimas 16 semanas, o grupo low-carb, com mais calorias no jantar, apresentou um reganho de peso de +11,7 kg (dos 15,2 kg que perderam inicialmente). Enquanto isso, o grupo com mais calorias pela manhã continuou emagrecendo, com uma perda de 7,0 kg adicionais (além dos 13,6 kg que já tinham perdido):




Essa diferença toda na perda e no reganho de peso nos faz entender por que os parâmetros metabólicos avaliados ao final do estudo, após as duas fases (intervenção e manutenção), foram tão diferentes entre os grupos. Até as primeiras 16 semanas, as melhorias foram similares. Porém, depois do reganho de peso no grupo LCb e da continuidade na perda de peso no grupo HCPb, os marcadores voltaram a piorar no grupo com mais calorias à noite (LCb), enquanto continuaram a melhorar no grupo com mais calorias pela manhã (HCPb).

Juntos com os dois primeiros estudos comentados, Jakubowicz et al. (2013) e Lombardo et al. (2014), os resultados apresentados sugerem que, além de ser mais eficiente no emagrecimento e na melhora de parâmetros metabólicos, uma dieta com mais calorias pela manhã parece ser mais fácil de ser seguida por um tempo mais prolongado — pelo menos por pessoas que apresentam resistência à insulina e estão consumindo uma dieta com restrição calórica.

Isso é importante porque uma das maiores dificuldades que as pessoas apresentam é justamente a adesão às dietas. Se temos a possibilidade de montar um plano alimentar que possui maior facilidade de ser seguido, isso já é um grande passo para alcançarmos resultados mais positivos no emagrecimento.


Timing de calorias além da perda de peso

Os benefícios do timing de calorias podem ir além do emagrecimento.

Em outro estudo com duração de 3 meses, pacientes com diabetes tipo 2 apresentaram um controle glicêmico — hemoglobina glicada (HbA1c) e glicemia de jejum — visivelmente melhor ao consumirem uma dieta com mais calorias na parte da manhã em vez de mais calorias durante a noite. Além disso, esses mesmos participantes apresentaram uma maior taxa de redução no uso de medicamentos para diabetes (31% dos pacientes, contra 0% daqueles que consumiram mais calorias à noite).

Mas algumas evidências já sugerem que a melhoria no controle glicêmico não demora muito para acontecer. Novamente com pacientes que apresentavam diabetes tipo 2, uma dieta com mais calorias pela manhã levou a níveis sanguíneos de glicose 24% menores em relação aos participantes que consumiram mais calorias no jantar — depois de apenas 7 dias.

E os benefícios parecem se estender para a síndrome do ovário policístico. O que faz sentido, já que essa patologia, assim como a síndrome metabólica e o diabetes tipo 2, também é caracterizada pela resistência à insulina.

Seguindo a mesma lógica dos estudos já mencionados, Jakubowicz e colaboradores*** verificaram que mais calorias pela parte da manhã, durante 90 dias, levou a resultados bem significativos na secreção de insulina (-54%), na testosterona livre (-50%), nos níveis de SHBG (+105%) e na secreção máxima de progesterona (+39%). Além disso, observou-se um aumento na taxa de ovulação das participantes.


***Sim, a maioria dos estudos citados até aqui são do mesmo grupo de pesquisadores. Isso mostra como o assunto tem recebido pouca atenção; se fosse diferente, mais cientistas estariam trabalhando com esse tipo de intervenção.


Tudo isso vai ao encontro do que a literatura científica tem mostrado sobre os efeitos positivos das dietas low-carb na síndrome do ovário policístico (exemplos aqui, aqui, aqui e aqui). Justamente porque os dois tipos de intervenção — dietas low-carb e dietas com mais calorias pela parte da manhã — parecem exercer impacto direto sobre o estado metabólico negativamente alterado que é característico da resistência à insulina, presente na síndrome metabólica, no diabetes tipo 2 e na síndrome do ovário policístico.


Considerações finais

Em primeiro lugar, é importante fazer a ressalva de que, até o momento, nos estudos que focaram na perda de peso e no emagrecimento, as comparações entre consumir mais calorias pela manhã e mais calorias à noite foram feitas no contexto de dietas com restrição calórica. Isso não chega a ser um problema por si só, porque as pessoas que realmente buscam o emagrecimento já consomem dietas hipocalóricas. Mas eu menciono esse ponto justamente porque ficam algumas perguntas, como:

Com mais calorias pela manhã, será que os mesmos efeitos seriam observados em dietas sem restrição calórica? Seria possível emagrecer mesmo sem reduzir a ingestão de calorias, assim como pode acontecer com o jejum intermitente? Ou será que simplesmente haveria uma manutenção do peso (como é de se esperar), uma vez que o consumo de calorias seria equivalente ao gasto energético?

E o que aconteceria no contexto de uma dieta hipercalórica? Será que o aumento na prevalência de sobrepeso e obesidade que temos no mundo poderia ter a ver, pelo menos em parte, com um maior consumo de calorias à noite? Recentemente foi publicado um estudo mostrando que as crianças norte-americanas consomem mais calorias no almoço e no jantar; poderia isso ter uma relação com o aumento da obesidade infantil (e até da obesidade geral) nos últimos anos?

A ciência ainda não sabe a resposta para essas perguntas, mas é difícil imaginar que os resultados caminhariam numa direção contrária ao que foi observado nos estudos discutidos aqui. Por exemplo, uma dieta sem restrição calórica, mas com a maior parte das calorias consumidas pela manhã, provavelmente não levaria à mesma perda de peso de uma dieta hipocalórica nas mesmas condições (como as dietas dos estudos mencionados no texto). Mas eu apostaria que existe uma grande chance do emagrecimento ocorrer, mesmo que seja uma perda menor ou mais gradual, mesmo sem restrição calórica.

E ainda que o emagrecimento não aconteça em dietas sem restrição calórica, os resultados positivos observados nos marcadores metabólicos sugerem que outros benefícios provavelmente estarão presentes para pessoas que consomem mais calorias na primeira parte do dia. Inclusive, o maior emagrecimento com a ingestão de mais calorias durante a manhã, observado nos estudos, parece ser um reflexo de como esse tipo de distribuição de calorias pode afetar positivamente todo o estado metabólica de uma pessoa. É como se o corpo estivesse falando “Essa distribuição de energia é mais adequada para o meu estado metabólico atual”. É por isso que, além da perda de peso, observamos vários outros resultados positivos em parâmetros metabólicos e de saúde.

De fato, um estudo publicado há pouco tempo, em maio de 2017, reforça o que vimos sobre saúde metabólica nos estudos discutidos anteriormente. Três intervenções foram testadas: além da dieta controle (que não interessa muito, nesse caso), os participantes consumiram uma dieta sem jantar (apenas café da manhã + almoço) ou sem café da manhã (apenas almoço + jantar). Apesar do estudo ter durado apenas 24 horas, um único dia de intervenção foi suficiente para ver que pular o café da manhã, quando comparado a pular o jantar, levou a resultados agudos negativos: maior concentração de glicose no sangue (+46%) e maior grau de resistência à insulina (+54%).

Essa é mais uma evidência sugerindo que consumir mais calorias pela manhã realmente parece exercer um efeito metabólico mais positivo no organismo. E, de quebra, são resultados que sugerem que concentrar as refeições do jejum intermitente na parte da manhã, em vez da noite, poderia fazer com que essa prática leve a resultados ainda mais positivos.

No entanto, vale ressaltar também que todos esses trabalhos ainda são estudos iniciais. Estamos apenas começando a entender como as diferentes distribuições de calorias ao longo do dia podem influenciar a composição corporal e a saúde. Mas os resultados, até o momento, sugerem que consumir a maior parte das calorias durante o dia, pelo menos num contexto de perda de peso, potencializam o emagrecimento — e, consequentemente, uma melhor recuperação de um estado metabólico normal.

Essa não é uma fórmula mágica de como emagrecer sem cortar (ainda mais) calorias. É só a ciência mostrando a enorme complexidade da nossa fisiologia, e como a alimentação pode influenciá-la de maneira surpreendente.



terça-feira, 4 de abril de 2017

E se comer salmão fosse mais barato que suplementar ômega-3?




Muito se discute sobre o melhor suplemento de ômega-3. Óleo de peixe ou o “novo” óleo de krill? Na forma de fosfolipídeos ou triglicerídeos? Qual é a dose ideal? E o melhor horário?

Antes mesmo dessas perguntas, poderíamos nos questionar: precisamos mesmo aumentar nosso consumo de ômega-3? Sei que muitas pessoas podem estranhar essa pergunta: “Como assim? É claro que precisamos comer mais ômega-3. Todo mundo sabe que o ômega-3 faz muito bem pra saúde”.

Por mais que quase não seja comentado, a verdade é que as evidências sobre os benefícios do ômega-3 na saúde humana são muito menos conclusivas do que a maioria das pessoas acha. O ômega-3 é sim um nutriente essencial; não há dúvidas disso. Só que os efeitos positivos da suplementação de ômega-3, ou até mesmo de uma maior ingestão desse nutriente na alimentação, são questionáveis.

Mas levanto esse primeiro ponto mais como curiosidade. Porque não vamos falar sobre isso hoje. Para esse texto, vamos considerar que a maior ingestão de ômega-3 — por alimentos ou suplementos — é sim algo importante.

Com isso mente, vamos tentar responder outra pergunta, que infelizmente quase nunca é feita: vale a pena suplementar ômega-3?

Na verdade, a pergunta é... Quem oferece o melhor custo-benefício para o ômega-3: alimentos ou suplementos?

Não é uma análise difícil de se fazer. Basta compararmos o custo dos suplementos em relação ao custo de alimentos ricos em ômega-3, levando em consideração a quantidade desse nutriente presente nos suplementos e nos alimentos.

E, além do preço, vamos falar também de algumas outras variáveis que devem entrar nessa avaliação. Mas vamos começar falando do preço mesmo.


Ômega-3: Suplementos x Alimentos

Para essas comparações, escolhi 5 marcas conhecidas que possuem suplementos de ômega-3: Vitafor, Performance, Max Titanium, Essential e Probiótica.

O primeiro passo é determinar o preço dos suplementos de ômega-3 de cada marca. Esses preços variam muito de site para site. Por isso, pesquisei em vários sites diferentes, desde grandes redes até lojas de suplementos, e calculei o preço médio dos suplementos de ômega-3 das marcas escolhidas.

Sempre que possível, optei pela versão dos suplementos que contêm o maior número de cápsulas, porque o preço proporcional (preço por cápsula) é menor. A exceção a essa regra foi quando o produto até tinha uma versão com mais cápsulas (120, por exemplo), mas a sua oferta no mercado era baixa — poucos sites vendendo o produto com mais cápsulas. Nesse caso, optei pela versão com menor número de cápsulas (90, por exemplo), justamente porque, devido a uma oferta bem maior no mercado, essa opção possui uma maior probabilidade de ser comprada por eventuais consumidores.

Em seguida, deve-se conhecer a quantidade total de ômega-3 que cada um desses produtos oferece. E isso precisa ser feito individualmente, porque os suplementos podem vir com um número diferente de cápsulas e podem conter quantidades diferentes de ômega-3 em cada cápsula. Por exemplo, enquanto o suplemento da Vitafor vem com 120 cápsulas e são necessárias 3 cápsulas para se obter 1 g de ômega-3, o suplemento da Essential vem com 60 cápsulas e são necessárias apenas 2 cápsulas para termos a mesma quantidade de ômega-3.

Depois de saber o preço e a quantidade total de ômega-3 presente nos suplementos, é possível calcular o custo de cada grama de ômega 3 (R$/g ômega-3). Esse é a nossa principal medida para nossa análise.

Para representar os alimentos, escolhi o salmão. Em Brasília, o preço atual do filé de salmão, sem pele, está por volta de R$ 70,00/kg. Como o custo da alimentação em Brasília é um dos maiores do Brasil, dificilmente outra cidade terá um salmão com preço mais elevado que esse.

Além do preço, precisamos conhecer também a concentração de ômega-3 no salmão. Esse número é variável, porque depende do tipo de salmão, do tamanho dos animais e da época em que eles são pescados.

No Brasil, a maior parte do salmão comercializado é de cativeiro. O salmão de cativeiro possui maior quantidade de gordura total, e valores absolutos superiores de ômega-3, do que o salmão selvagem. Mas, até mesmo entre animais do mesmo tipo (cativeiro x cativeiro, por exemplo), ainda sim a concentração de ômega-3 pode variar.

E é o que os estudos mostram. Devido a vários fatores capazes de influenciar a composição de gorduras do salmão, estudos diferentes obtêm resultados diferentes para a concentração de ômega-3 presente em cada kg de salmão, como 15,6 g/kg (Jensen et al., 2012), 33,8 g/kg (Hamilton et al., 2005) e 24,3 g/kg (Ikonomou et al., 2007).

Assim, vamos comparar aos suplementos cada um das concentrações de ômega-3 que os diferentes estudos verificaram para o salmão. No entanto, vamos dar um foco maior no valor de 24,3 g/kg (Ikonomou et al), que é basicamente igual ao valor médio — que seria de 24,6 g/kg — entre as três diferentes concentrações de ômega-3 citadas.

Abaixo, a tabela com o resumo das informações:




O menor custo entre os suplementos foi o da Max Titanium, com R$ 0,96/g de ômega-3. As demais marcas variaram entre R$ 1,07 (Performance), R$ 1,33 (Probiótica), R$ 1,55 (Vitafor) e R$ 3,30 (Essential).

A partir desses dados, não há dúvidas: o custo por cada grama de ômega-3 é consideravelmente menor nos suplementos. Com exceção do suplemento da Essential, o valor que seria pago por cada grama de ômega-3 nos salmões é consideravelmente maior. Nem mesmo o salmão com maior concentração de ômega se sai muito bem (R$ 1,78/g de ômega 3), principalmente se compararmos ele aos suplementos com melhor custo-benefício. E os salmões com menor concentração de ômega-3 não tem a menor chance — ficam bem mais caros mesmo (R$ 2,47 e R$ 3,85).

Ou será que não?


A biodisponibilidade muda tudo

Aqui está o diferencial dos alimentos em relação aos suplementos: a biodisponibilidade.

O que acontece é que a absorção e incorporação do ômega-3 total (EPA +DHA) proveniente dos alimentos, mais especificamente do salmão, é muito superior ao que acontece para o ômega-3 dos suplementos. Essa superioridade pode variar de 3,4x até 6,5x!

Se fizermos uma média entre esses dois números, temos que o ômega-3 do salmão é 5x mais bem absorvido e incorporado no corpo humano do que o ômega-3 dos suplementos. Assim, se dividirmos por 5 o custo de cada grama de ômega-3 no salmão (tabela acima), chegamos à conclusão que, na verdade, é muito mais barato obter o ômega-3 por meio da ingestão de salmão do que por suplementos:

  • Salmão 1 (concentração de ômega-3 = 15,6 g/kg) — R$ 0,77
  • Salmão 2 (concentração de ômega-3 = 24,3 g/kg) — R$ 0,49
  • Salmão 3 (concentração de ômega-3 = 33,7 g/kg) — R$ 0,36


Outras vantagens do salmão

Vamos considerar o mesmo exemplo acima: concentração média de ômega-3 de 24,3 g/kg de salmão, e uma biodisponibilidade média 5x maior em relação aos suplementos. Uma pessoa que ingere 1 g/dia de ômega-3 na forma de suplementos, ou 7 g/semana, a princípio precisaria consumir cerca de 60 g de salmão por semana para ter uma ingestão equivalente desse nutriente. Apenas 60 g/semana!

E então alguém pode dizer: “Ah, eu não vou comprar só 60 g de salmão. Até porque o salmão normalmente é vendido já embalado, em quantidades maiores”. Tudo bem, você não precisa comprar só 60 g. Você pode, por exemplo, comprar uma quantidade maior e congelar o que não for consumir de imediato.

Mas as vantagens não estão relacionadas apenas ao menor preço que se paga pela mesma quantidade de ômega-3. O salmão, ao ser consumido, costuma substituir outros alimentos — normalmente outros peixes ou carnes. Por isso, se você opta por ingerir ômega-3 proveniente do salmão em vez de suplementos, seu gasto total com alimentos ainda se reduz um pouco mais, já que o total de outras carnes (ou outros alimentos) que você vai consumir será um pouco menor.

Um exemplo:

Vamos considerar uma carne de baixo custo que praticamente não precisa ter partes removidas antes do consumo, como a carne moída. Em Brasília, referencial que eu usei para o custo do salmão, você paga cerca R$16,00/kg pelos cortes mais baratos de carne moída.

Se você consumir, por semana, 60 g de salmão, o valor pago será de R$ 4,20 (considerando o preço de R$ 70,00/kg). Mas, considerando a concentração média de ômega-3 de 24,3 g/kg de salmão, podemos dizer que R$ 3,50 desse valor total (R$ 4,20) que pagamos pelos 60 g de salmão corresponde apenas ao ômega-3 que estaria sendo consumido (~1, 5 g de ômega-3 do salmão, equivalentes a ~7 g de ômega-3 dos suplementos).

Mas, ao consumir 60 g de salmão em uma refeição, você a princípio deixa de consumir 60 g de outro alimento, como a carne moída citada acima. Enquanto 60 g dessa carne moída custam aproximadamente R$ 1,00, o “resto” dos 60 g do salmão — tirando o valor que estaríamos pagando pelo ômega-3 (R$ 3,50), por não estarmos ingerindo suplementos — custam apenas R$ 0,70 [R$ 4,20 (preço total dos 60 g de salmão) subtraído de R$ 3,50 (valor pago pelos 1,4-1,5 g de ômega-3 dessa mesma porção)].

Assim, se o salmão for consumido em uma porção que fornece o equivalente a ingerir 1 g/dia (7 g/semana) de ômega-3 na forma de suplementos, e se ele estiver substituindo um alimento semelhante (uma carne), você não paga mais por estar consumindo o salmão. Na verdade, considerando uma pessoa que usa suplementos de ômega-3, a inclusão do salmão na dieta pode levar a uma redução no custo da alimentação — uma redução que não é tão grande assim, porque a porção de salmão é pequena, mas que já vale a pena pelo simples fato de não aumentar o custo com a alimentação.

Mas a parte mais importante é: o salmão é um alimento nutricionalmente muito rico. A quantidade de 60 g de salmão*, equivalente a 7 g de ômega-3 na forma de suplementos, possui em sua composição (em % das nossas necessidades diárias):

  • Vitamina B3: 24% 
  • Vitamina B6: 24% 
  • Vitamina B12: 56% 
  • Vitamina D: 233% 
  • Selênio: 36% 


*60 g de salmão cru provavelmente possui um peso 20% menor após a cocção, normalmente grelhado ou assado. Isso equivaleria a ~48 g de salmão pronto (a não ser que seja sushi; nesse caso, 60 g de salmão cru são 60 g de salmão pronto). Os valores acima são referentes a uma porção de 48 g de salmão pós-cocção.


Além disso, essa porção de salmão possui quantidades razoáveis de vários outros nutrientes, como vitamina B1 (14%), vitamina B5 (14%) e vitamina E (10%). Sem contar a proteína de alto valor biológico (10,6 g).


Considerações finais

Vale mencionar que os estudos que compararam a biodisponibilidade de ômega-3 entre alimentos e suplementos foram feitos com o salmão como alimento de referência. Por isso escolhi o salmão para fazer as comparações desse texto. Desconheço estudos que usaram outros tipos de peixe ricos em ômega-3, como a sardinha, para comparar a biodisponibilidade do ômega-3 desses outros alimentos à biodisponibilidade do ômega-3 dos suplementos.

Por isso, o que já foi observado para o salmão a princípio não pode ser extrapolado para outros peixes (ou outros alimentos que contêm ômega-3, como os frutos do mar). Mesmo assim, se eu fosse “adivinhar”, diria que a biodisponibilidade do ômega-3 em outros alimentos ricos nesse nutriente também é maior do que a observada para os suplementos — e quem sabe não seria maior do que a própria biodisponibilidade do ômega-3 do salmão?

Outro ponto importante é a questão da qualidade do ômega-3. De vez em quando surgem análises independentes, e alguns estudos publicados na literatura científica, que encontram lipídeos oxidados — ômega-3 e outras gorduras — presentes nos suplementos. A chance de isso acontecer com a gordura dos alimentos é muito menor, porque ela está lá, protegida e relativamente intacta, até que o alimento seja manipulado e consumido.

Por fim, vale também lembrar: várias linhas de evidência sugerem que os nutrientes presentes nos alimentos podem atuar em sinergia. É claro que cada um deles possui papéis específicos a desempenhar, como o ferro compondo a hemoglobina e a vitamina B3 compondo as moléculas de NADH. Mas não podemos subestimar a “mágica” dos nutrientes atuarem em conjunto, entre eles, para nos proporcionarem saúde.

Esses potenciais benefícios podem ser obtidos com alimentos como o salmão, mas não com suplementos de ômega-3.