terça-feira, 11 de novembro de 2014

Como aumentar seus níveis de ômega-3, mesmo sem ingerir mais ômega-3?




As gorduras do tipo ômega-3 são essenciais e extremamente importantes para o funcionamento do nosso organismo. Os níveis adequados desses lipídeos no corpo são capazes de modular diversos aspectos da nossa fisiologia, tais como o funcionamento das membranas celulares, vias bioquímicas e de sinalização no interior das células, a produção de substâncias e mediadores envolvidos em processos pró- e anti-inflamatórios e a regulação de funções do DNA, entre outros [1].

Por esses motivos, é de suma importância que o consumo, e principalmente os níveis corporais, de ômega-3 sejam sempre adequados. Uma das formas de garantir isso é através da ingestão direta ou suplementação de ômega-3. Entretanto, veremos que existe pelo menos uma forma de se melhorar os níveis corporais de ômega-3, mesmo sem aumentar o consumo desse tipo de gordura.


Tipos de ômega-3

Para quem não conhece, esses são os principais tipos de ômega-3:


Ácido α-linolênico = ALA (C18:3)


Ácido eicosapentaenoico = EPA (C20:5)


Ácido docosahexaenoico = DHA (C22:6)


Como curiosidade, as gorduras do tipo ômega-3 recebem esse nome porque a primeira dupla-ligação na cadeia de carbonos encontra-se no carbono nº 3, contada a partir do carbono ômega. O carbono ômega é justamente aquele “solto” no final da cadeia, ou seja, não ligado ao grupamento carboxila (–COOH) no início da molécula.

O primeiro entre os apresentados nas imagens anteriores, o ácido α-linolênico (ALA), é o ômega-3 presente em alimentos de origem vegetal. As principais fontes de ALA são a linhaça e a chia. Estruturalmente, o ALA possui 18 carbonos e 3 duplas-ligações (insaturações), e por isso a denominação “C18:3”. Pelo número de carbonos, é considerado um ácido graxo de cadeia longa.

Caso a pessoa não faça a ingestão de carnes (bovina, de frango, peixe etc.) ou de produtos de origem animal por completo, como no caso dos vegetarianos e dos veganos, respectivamente, o ALA deve ser considerado como um nutriente essencial — justamente porque, como veremos abaixo, muito provavelmente não haverá ingestão suficiente das formas ativas EPA e DHA, encontradas em alimentos de origem animal. Como informação adicional: nutriente essencial é aquele que o nosso corpo não produz de maneira alguma ou não produz em quantidades suficientes para suprir todas as nossas necessidades fisiológicas, e, portanto, precisa necessariamente ser obtido por meio da dieta.

O problema de depender do ALA como um nutriente essencial é que sua conversão para as formas ativas EPA e, principalmente, DHA é muito baixa [2,3]. Essa conversão é um pouco melhor em mulheres do que em homens, mas mesmo assim ainda é pequena [4]. Portanto, no caso de indivíduos que não consomem fontes de EPA e DHA, é necessário se atentar bastante ao consumo de ômega-3 total na alimentação.

Os dois outros ômega-3 destacados nas imagens, ácido eicosapentaenoico (EPA) e ácido docosahexaenoico (DHA), são encontrados em produtos de origem animal. As principais fontes são os peixes de águas frias e profundas, como salmão, sardinha, atum, arenque, cavala etc. Estruturalmente, o EPA possui 20 carbonos e 5 duplas-ligações, enquanto que o DHA possui 22 carbonos e 6 insaturações — por isso as denominações C20:5 e C22:6, respectivamente. Pelo número de carbonos, ambos são considerados como ácidos graxos de cadeia muito longa.

Em nosso organismo, considerando as diversas funções que os ômega-3 possuem, as formas EPA e DHA são aquelas verdadeiramente ativas e essenciais. Entretanto, se considerarmos apenas a prevenção dos sintomas causados pela deficiência de ômega-3, nem mesmo o EPA talvez devesse ser considerado essencial, apenas o DHA [5]. De qualquer maneira, o DHA está sempre junto ao EPA, seja em alimentos ou suplementos. Assim, considerando a atividade biológica, quem ingere quantidades suficientes de EPA+DHA, pela alimentação ou suplementação, a princípio não precisa nem se preocupar em ingerir ALA.


Ômega-3 x Ômega-6

Existe uma estreita relação entre os metabolismos das gorduras do tipo ômega-3 e daquelas do tipo ômega-6. Observe na imagem abaixo como ambas as vias metabólicas utilizam as mesmas enzimas:

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É por esse motivo que tanto as quantidades totais com a proporção na ingestão de ômega-3 e ômega-6 na dieta são importantes, podendo influenciar diretamente o estado metabólico do organismo, principalmente no que diz respeito às funções pró- e anti-inflamatórias.

Essa integração no metabolismo ajuda a explicar e entender como é possível “ingerir” ômega-3 mesmo sem ingerir ômega-3. Ou seja, é possível melhorar seus estoques desse tipo de gordura mesmo sem aumentar seu consumo através da alimentação ou suplementação.


Como “ingerir” mais ômega-3, mesmo sem ingerir mais ômega-3?

Dois estudos publicados esse ano nos ajudam a responder essa pergunta. Veja como a simples redução nas gorduras do tipo ômega-6, especialmente o ácido linoleico (LA) — presente em grandes quantidades nos óleos vegetais refinados (soja, milho, canola, algodão, girassol etc.) —, é capaz de aumentar os níveis corporais de ômega-3.

No primeiro desses estudos [6], os participantes foram orientados a evitar o consumo de alguns alimentos que são fontes de ômega-6, além de receberem dos pesquisadores um suprimento de óleo de macadâmia (rico em gordura monoinsaturada) e manteiga (rica em gordura saturada) para serem consumidos no lugar de outras fontes de gorduras.

Após um período de apenas 4 semanas, foi observado aumento nas concentrações de EPA, DHA e ácido docosapentaenoico (DPA) — todos da família ômega-3. Além disso, verificou-se redução nos níveis de LA e ômega-6 total. Vale ressaltar que isso tudo aconteceu sem a ingestão de fontes consideráveis de ômega-3. Na verdade, o consumo total de ômega-3, em números absolutos, foi inclusive menor durante o período do experimento do que em relação ao consumo habitual dos participantes antes do estudo; apesar disso, não houve diferença estatística.


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O segundo estudo [7] teve um desenho experimental um pouco diferente. Nele, os participantes foram divididos em dois grupos:

1) Redução de ômega 6 (L6 diet)
2) Redução de ômega 6 + Aumento de ômega-3

Todos os indivíduos receberam orientações nutricionais periódicas e, também, tiveram a maior parte das refeições diárias fornecidas pelos pesquisadores. Ao final do período de acompanhamento, que foi de 12 semanas, o grupo que reduziu apenas ômega-6 na dieta apresentou aumento nos níveis de ALA, EPA e DHA, todos da família ômega-3. Além disso, houve redução nos níveis de LA (ômega-6). O grupo que aumentou a ingestão de ômega-3, além de reduzir o consumo de ômega-6, apresentou resultados ainda melhores no aumento nos níveis de ômega-3 e na redução da concentração de ômega-6 no corpo.


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Considerações finais

Como reduzir o ômega-6 na dieta, de forma a potencializar os níveis corporais de ômega-3? Basta eliminar todos os óleos vegetais refinados (soja, canola, milho, girassol etc.) que normalmente são utilizados para cozinhar, já que todos eles são extremamente ricos em ômega-6. Substitua-os por manteiga, azeite de oliva ou óleo de coco. Evite também, de maneira geral, o consumo de produtos industrializados, os quais normalmente contêm esses óleos vegetais em sua composição.

Em alguns casos — como, por exemplo, em pacientes que possuem doenças com patogênese essencialmente inflamatória —, é possível que seja necessário ser um pouco mais “radical”, reduzindo também o consumo de alguns alimentos que naturalmente são mais ricos em gorduras do tipo ômega-6. As nozes, castanhas e sementes em geral são alguns exemplos, além de boa parte daqueles alimentos de origem vegetal que são mais ricos em gorduras. Algumas oleaginosas, como a castanha de caju, avelã e, especialmente, macadâmia são opções ricas em gorduras que possuem teor reduzido de ômega-6.





Referências

1. Calder PC. Very long chain omega-3 (n-3) fatty acids and human health. Eur J Lipid Sci Technol. 2014;116(10):1280-300.

2. Burdge GC, Calder PC. Conversion of alpha-linolenic acid to longer-chain polyunsaturated fatty acids in human adults. Reprod Nutr Dev. 2005;45(5):581-97.

3. Gibson RA, et al. Conversion of linoleic acid and alpha-linolenic acid to long-chain polyunsaturated fatty acids (LCPUFAs), with a focus on pregnancy, lactation and the first 2 years of life. Matern Child Nutr. 2011;7 Suppl 2:17-26.

4. Decsi T, Kennedy K. Sex-specific differences in essential fatty acid metabolism. Am J Clin Nutr. 2011;94(6 Suppl):1914S-1919S.

5. Le HD, et al. The effect of varying ratios of docosahexaenoic acid and arachidonic acid in the prevention and reversal of biochemical essential fatty acid deficiency in a murine model. Metabolism. 2013;62(4):499-508.

6. Wood KE, et al. A low omega-6 polyunsaturated fatty acid (n-6 PUFA) diet increases omega-3 (n-3) long chain PUFA status in plasma phospholipids in humans. Prostaglandins Leukot Essent Fatty Acids. 2014;90(4):133-8.

7. Taha AY, et al. Dietary omega-6 fatty acid lowering increases bioavailability of omega-3 polyunsaturated fatty acids in human plasma lipid pools. Prostaglandins Leukot Essent Fatty Acids. 2014;90(5):151-7.



terça-feira, 28 de outubro de 2014

Refluxo: sua relação com a alimentação — Parte 2




No primeiro post dessa série, exploramos como uma dieta com redução de carboidratos pode auxiliar na redução de sintomas e no tratamento do refluxo. Comentamos também sobre o fato de que os medicamentos normalmente utilizados no controle dessa patologia podem, ao invés de melhorar, piorar o quadro da doença.

Para mostrar a efetividade da redução de carboidratos sobre sinais e sintomas do refluxo, aqui está um caso real.


Caso de hérnia de hiato

Indivíduo jovem, do sexo masculino, sem sobrepeso ou obesidade, realizou uma endoscopia de rotina e descobriu que possuía hérnia de hiato. Essa doença é caracterizada pelo deslocamento, ou protrusão, de uma parte do estômago através da musculatura do diafragma. O resultado disso é uma alteração anatômica e fisiológica do estômago, modificando a funcionalidade do esfíncter esofágico inferior (estrutura muscular que comunica o esôfago ao estômago) — facilitando o refluxo do conteúdo estômago para o esôfago [1].

É por isso que pacientes com hérnia de hiato normalmente apresentam refluxo [2]. Esse era justamente o caso do paciente em questão: hérnia de hiato + refluxo.

A imagem mais à esquerda é a do estômago normal, enquanto que as demais figuras correspondem a duas situações de hérnia de hiato. Importante de se observar é que, em ambos os casos de hérnia, a anatomia e funcionalidade do estômago e do esfíncter esofágico inferior são alteradas.


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Veja a situação inicial do esôfago do paciente, já com lesões consideráveis:


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As partes com um vermelho mais vivo, junto com uma coloração esbranquiçada, são as lesões no esôfago. Circulei uma delas na imagem da esquerda para ficar mais fácil de observá-las. É possível ver diversas e extensas lesões causadas pelo refluxo.


Tratamento

Como já havia lesões severas, e como a hérnia de hiato já estava relativamente avançada, o médico levantou a possibilidade de realizar uma cirurgia no estômago do paciente para corrigir o problema. O objetivo da cirurgia seria principalmente para melhorar os sintomas do refluxo e as lesões esofágicas causadas por essa doença, os quais provavelmente ocorreriam porque a estrutura do estômago seria remodelada para prevenir esses efeitos adversos.

Entretanto, antes de um procedimento mais severo, o médico prescreveu o tratamento tradicional para o tratamento do refluxo: um remédio para reduzir a secreção de ácido no estômago e outro para aumentar a motilidade desse órgão. A menor secreção ácida naturalmente faria com que o conteúdo do estômago se tornasse menos danoso às células do esôfago, sempre que houvesse refluxo. A maior motilidade no estômago faria com que o alimento permanecesse menos tempo no estômago e também estimulasse menos a secreção ácida, desfavorecendo o retorno do conteúdo do estômago para o esôfago. Na hipótese de melhora, o médico sinalizou que a medicação deveria ser utilizada de forma contínua (por período não determinado) pelo paciente. A descontinuidade do tratamento poderia comprometer qualquer melhoria alcançada ou até piorar o quadro.

Pela ânsia de tratar as lesões causadas pelo refluxo, e logicamente pelo receio da doença progredir, o paciente decidiu seguir a orientação média. Inicialmente, o tempo de tratamento com os dois medicamentos seria de 6 meses, quando, ao final do período, o paciente retornaria ao consultório médico para realizar uma nova endoscopia. O prognóstico não era tão otimista, uma vez que o médico não garantiu que haveria melhora rápida e significativa das lesões no esôfago — pelo menos não no curto ou médio prazo.

Após 2 meses de tratamento com os medicamentos, o paciente percebeu que sua alimentação poderia estar interferindo de alguma forma nos sintomas do refluxo. Pouco tempo depois, ele tomou conhecimento que uma dieta com redução de carboidratos poderia ajudar no tratamento do refluxo.

Nas primeiras semanas em que modificou sua alimentação, continuou tomando os remédios como “garantia”. Entretanto, já a partir do terceiro mês o paciente resolveu abandonar os medicamentos para observar apenas o efeito da dieta sobre a sua condição.

O resultado de 3 meses realizando apenas uma dieta com redução de carboidratos foi o seguinte:

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Como pode ser observado, houve melhora significativa das lesões com a adoção de uma dieta reduzida em carboidratos. As lesões passaram a ser quase que imperceptíveis. Além disso, os sintomas do refluxo, que no caso desse paciente era a pirose (azia), também desapareceram.


Tratamento alternativo do refluxo: probióticos

Como comentamos na primeira parte desse post, o refluxo é comumente causado pelo aumento na pressão intra-abdominal, a qual pode ser facilmente decorrente do supercrescimento bacteriano no intestino delgado (SIBO) — onde a produção de gases desencadearia o aumento na pressão.

Existe a possibilidade de uma dieta reduzida em carboidratos (low-carb) não ser tão efetiva em alguns casos de refluxo? Provavelmente... Existe a possibilidade de uma dieta low-carb não ser tão efetiva no longo prazo, mesmo quando é efetiva no curto ou médio prazo? Também...

Isso pode acontecer porque a proliferação bacteriana, seja no intestino grosso ou delgado, é dependente dos substratos que fornecemos a elas (fibras alimentares, amido resistente, oligossacarídeos etc.) e também dos tipos de bactérias que existem no nosso intestino. Se não houver os tipos de bactérias com as quais evoluímos, e que normalmente colonizam nosso intestino grosso ao invés do intestino delgado, existe a maior possibilidade de crescimento de bactérias que não deveriam estar se proliferando no trato gastrointestinal.

É preciso entender que as bactérias competem entre si por espaço, alimento e condições para sobreviverem em nosso intestino. Assim, caso uma dieta low-carb não funcione corretamente em alguns casos de refluxo, é possível que o balanço entre as bactérias precise ser alterado, par que as bactérias “benéficas” façam com que as bactérias “ruins” percam espaço e descolonizem o intestino delgado. E isso possivelmente pode ser alcançado com a suplementação de probióticos (aquelas bactérias que são capazes de habitar e se desenvolver no trato digestório) e com a adoção de algumas outras práticas importantes.

Esse é um assunto muito escasso de evidências na literatura científica, e pretendo abordá-lo com mais detalhes futuramente. Considere conversar com um nutricionista ou profissional de saúde qualificado para saber se a utilização de probióticos, além de um plano alimentar individualizado e específico para essa finalidade, deve ser adotada.


Considerações finais

Nunca subestime o potencial que a alimentação pode ter sobre as mais diversas condições patológicas. Vimos aqui, por meio de um caso real e prático, como uma dieta com redução de carboidratos pode ser extremamente benéfica num caso onde os medicamentos são, muitas vezes, pouco efetivos ou trazem inúmeros efeitos adversos.

E esse é mais um exemplo do poder da Nutrição.


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Posts da série:





Referências

1. Kahrilas PJ. The role of hiatus hernia in GERD. Yale J Biol Med. 1999;72(2-3):101-11.

2. Gordon C, et al. The role of the hiatus hernia in gastro-oesophageal reflux disease. Aliment Pharmacol Ther. 2004;20(7):719-32.


terça-feira, 14 de outubro de 2014

Refluxo: sua relação com a alimentação — Parte 1





O refluxo gastroesofágico, popularmente conhecido como azia ou queimação, é uma condição patológica extremamente comum na população [1]. Na realidade, a azia, tecnicamente conhecida como pirose, é apenas o sintoma mais evidente dessa doença. O refluxo propriamente dito, porém, é a condição na qual o conteúdo do estômago — que possui pH ácido devido à produção de ácido clorídrico (HCl) —, por qualquer que seja o motivo, se desloca do seu local original (o estômago) e chega até o esôfago, que é o “tubo” que conecta a boca ao estômago. Assim, o contato do conteúdo ácido do estômago provoca a sensação de "queimação" no esôfago.

Essa passagem do conteúdo do estômago para o esôfago não é normal e pode ser muito problemática. Ao contrário do estômago, que possui uma camada protetora de muco — já que é um órgão que constantemente produz HCl (um ácido) —, o esôfago não apresenta esse mesmo mecanismo de proteção, justamente porque não é uma parte do corpo que evoluiu em contato com substâncias ácidas.

Assim, quando há passagem do conteúdo gástrico para o esôfago, algo não está correto. Mas por que isso acontece? Quais são as causas do refluxo? Com evitar ou tratá-lo a partir da alimentação? Medicamentos que reduzem a produção de ácido no estômago ajudam?

Vamos entender um pouco melhor.


Causa #1: mau funcionamento do esfíncter

Existe uma estrutura que separa anatomicamente o esôfago do estômago, impedindo que ocorra a passagem retrógrada do conteúdo do estômago para o esôfago. O nome dessa estrutura é esfíncter esofágico inferior. Ele se abre apenas quando estamos nos alimentando, ou seja, quando o conteúdo ingerido está transitando da boca para o esôfago e, depois, do esôfago para o estômago.

Ao cessar a ingestão de alimentos, sólidos ou líquidos, o esfíncter esofágico inferior permanece fechado, impedindo o retorno do conteúdo gástrico ao esôfago. Apenas quando o esfíncter se abre é que pode haver a comunicação no sentido estômago —> esôfago: exatamente quando o HCl do estômago passa a entrar em contato com o esôfago, gerando o sintoma de “queimação” pela irritação e danos causados às células desprotegidas deste órgão.

Muita gente acha que a o refluxo é causado pela produção excessiva de ácido no estômago, mas essa não é bem a verdade. O refluxo gastroesofágico é considerado uma doença causada pela disfunção da estrutura muscular que separa o esôfago do estômago, ou seja, o esfíncter esofágico inferior. Se esse esfíncter estiver funcionando de maneira correta, simplesmente não deve haver a passagem de ácido do estômago para o esôfago — por maior que seja a quantidade de HCl. Por outro lado, alterações intrínsecas ou extrínsecas que alterem a atividade do esfíncter esofágico inferior podem levar à passagem de ácido e aos sintomas característicos do refluxo.

Na verdade, por menor que seja a quantidade de ácido presente no estômago, o mau funcionamento do esfíncter esofágico inferior ainda pode permitir a passagem do conteúdo do estômago para o esôfago, desencadeando sintomas.

Por isso, ao contrário do conhecimento popular e até do que alguns médicos recomendam, a uso de medicamentos que reduzem a secreção de ácido no estômago, como os inibidores da bomba de prótons (omeprazol e semelhantes), não deveria ser considerado um tratamento adequado para o refluxo [2,3]. Pode até haver uma redução parcial e aguda dos sintomas, já que a quantidade total de ácido produzida no estômago será drasticamente diminuída — potencialmente reduzindo os sintomas induzidos pelo conteúdo ácido no esôfago. Entretanto, entenderemos mais adiante por que o uso de medicamentos que reduzem a secreção de ácido no estômago, ou até mesmo os antiácidos convencionais, pode até piorar o quadro de refluxo.


Causa #2: aumento da pressão intra-abdominal

Atualmente, acredita-se que o refluxo é causado pelo aumento na pressão intra-abdominal do indivíduo [4]. Isso explica, por exemplo, porque o refluxo é muito mais prevalente em pessoas com obesidade [5,6]. Ou seja, a maior concentração de gordura na região abdominal seria responsável por aumentar, fisicamente, a pressão na região abdominal nesses indivíduos, favorecendo o mau funcionamento do esfíncter esofágico inferior e, consequentemente, a passagem do conteúdo do estômago para o esôfago.

Essa é uma das possibilidades, mas existe pelo menos mais uma: bactérias.

Existe uma condição patológica conhecida como supercrescimento bacteriano no intestino delgado, chamada também de SIBO (do inglês, Small Intestine Bacterial Overgrowth), caracterizada pelo desenvolvimento acima do normal de bactérias no intestino delgado [7].

O local preferencial e normal de crescimento bacteriano é o intestino grosso, e não o intestino delgado. Por isso, quando as bactérias encontram-se acima das quantidades normais no intestino delgado, alguns problemas e sintomas podem acontecer. E uma das possibilidades é a ocorrências do refluxo gastroesofágico.

E como o refluxo gastroesofágico aconteceria em decorrência da SIBO? As bactérias, entre outras substâncias, produzem gases durante o processo de metabolização de substratos. Além disso, elas se alimentam basicamente de carboidratos que nosso corpo, por qualquer que seja o motivo, não consegue digerir. Assim, a utilização de carboidratos não digeríveis pelas bactérias, no intestino delgado, favorece a produção de gases nesse local, que se encontra logo abaixo do estômago. A transposição dos gases produzidos no intestino delgado — pela crescente e indevida população bacteriana ali presente — para o estômago faz com que a pressão aumente nesse órgão, facilitando a abertura do esfíncter esofágico inferior e, consequentemente, a passagem do conteúdo gástrico para o esôfago. Essa sequência de eventos seria responsável pelo aparecimento dos sintomas do refluxo.

Não existem estudos que avaliaram diretamente a relação de causa e efeito da ocorrência de refluxo pelo crescimento bacteriano acima do normal no intestino delgado (SIBO), mas temos alguns estudos sobre o tratamento do refluxo que ajudam a apoiar essa ideia.


SIBO e o tratamento do refluxo pela alimentação

Vale ressaltar novamente que as bactérias no nosso corpo, onde quer que elas estejam presentes, alimentam-se basicamente dos carboidratos que não digerimos. Assim, a redução na quantidade de bactérias ao longo do trato gastrointestinal, seja no intestino grosso ou delgado, naturalmente resultará na diminuição da produção de gases.

Se a produção de gases pelas bactérias no intestino delgado de fato é um importante fator causal do refluxo, então há de se esperar que a redução no número de bactérias presentes nesse órgão implicará na redução dos sintomas da doença. Nesse sentido, existem duas estratégias nutricionais potencialmente efetivas para reduzir a quantidade de bactérias no intestino delgado:

1) Consumir uma dieta reduzida em carboidratos.

2) Reduzir a ingestão de fibras alimentares e outros carboidratos não digeríveis, como o amido resistente, mas não necessariamente diminuindo a ingestão total de carboidratos.

De fato, dois estudos já verificaram que uma dieta reduzida em carboidratos é capaz de diminuir tanto a ocorrência como a severidade de sintomas do refluxo gastroesofágico [8,9]. Não tem como saber ao certo se a redução de sintomas de fato é decorrente da menor quantidade de bactérias no intestino delgado, ou seja, da redução na SIBO. Entretanto, é uma hipótese muito plausível. Além disso, a redução de carboidratos funciona — e isso é sempre o mais importante.

Os carboidratos que não digerimos são basicamente as fibras alimentares e os diversos tipos de amido resistente, além de alguns oligossacarídeos e polióis. (Falaremos sobre fibras e outros carboidratos não digeríveis num momento mais oportuno). Como a ingestão de amido resistente e oligossacarídeos não digeríveis e polióis é normalmente muito baixa, as fibras que ingerimos na alimentação são a principal fonte de energia das bactérias em nosso intestino. Assim, é muito provável que a simples, mas drástica, redução no conteúdo de fibras na dieta resulte em resultados semelhantes aos observados com a redução de carboidratos da dieta — onde naturalmente ocorre a redução na quantidade de fibras da alimentação.

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Atualização (19/01/2018)  O primeiro ensaio clínico randomizado a comparar refeições com diferentes quantidades de carboidratos mostrou que refeições mais restritas em carboidratos ("low-carb") parecem influenciar positivamente os sintomas em pacientes com refluxo. O único "problema" do estudo é que ele foi agudo: testou apenas como algumas refeições mais ou menos ricas em carboidratos influenciam os sintomas dos pacientes, em vez de avaliar o efeito de dietas com duração de semanas ou meses. De qualquer forma, é mais um tipo de evidência sugerindo que dietas low-carb merecem a atenção no tratamento do refluxo gastroesofágico. 

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O problema com os medicamentos que reduzem a secreção de ácido no estômago

O primeiro grande problema da utilização de medicamentos que reduzem a secreção de ácido no estômago (omeprazol e semelhantes) no refluxo gastroesofágico, assim como em diversas outras doenças na medicina, é que o “tratamento” baseia-se apenas nos sintomas, e não na causa da patologia. É até possível melhorar os sintomas de forma aguda com o uso desses remédios — assim como com antiácidos convencionais —, mas a doença permanecerá lá, porque a causa da doença não foi tratada.

De qualquer maneira, a utilização desses medicamentos no refluxo é ainda mais complicada porque eles podem inclusive piorar o quadro da doença, justamente por que a redução na produção de ácido pelo estômago aumenta a quantidade e a proliferação bacteriana no intestino delgado [10,11] reduzir a produção de ácido no estômago. Isso acontece porque a produção de ácido no estômago é muito importante, por dois motivos nesse caso:

1) Inibir a proliferação bacteriana no intestino delgado.

2) Auxiliar a nossa digestão de carboidratos.

As bactérias não se desenvolvem bem em ambientes muito ácidos. Por isso, quando há redução na produção de ácido no estômago, com consequente redução da passagem de conteúdo ácido também para o intestino delgado, o ambiente torna-se mais favorável para o desenvolvimento de bactérias onde elas não deveriam crescer [10,11]. Assim, mais bactérias no intestino delgado = maior produção de gases = maior pressão intra-abdominal = exacerbação dos sintomas do refluxo.

Outra função importante do conteúdo ácido do estômago, após sua passagem para o intestino delgado, é o estímulo à secreção de enzimas que digerem carboidratos. A liberação dessas enzimas na parte inicial do intestino delgado é dependente de um pH baixo, ou seja, de um meio ácido. Se a produção de ácido no estômago está reduzida, naturalmente todo conteúdo que passa do estômago para o intestino também será pouco ácido, não estimulando de forma adequada a secreção de enzimas que digerem carboidratos. Consequentemente, se não digerimos de forma adequada parte dos carboidratos na porção inicial do intestino delgado, estes ficam disponíveis para que as bactérias os utilizem como fonte de energia.

Assim, mais carboidratos para as bactérias no intestino delgado = maior produção de gases = maior pressão intra-abdominal = exacerbação dos sintomas do refluxo.

Menos ácido = Piora do refluxo.


Considerações finais

Se você possui problemas relacionados ao refluxo, ou conhece alguém que os tenha, a redução no consumo de carboidratos, principalmente de fibras alimentares, é uma alternativa viável e interessante de se adotar para a melhora desse quadro. Essa estratégia pode melhorar de forma significativa tanto os sintomas como a causa da doença.

E isso é importante, porque o problema com o refluxo não é apenas o desconforto decorrente do contato do conteúdo ácido com o esôfago. No médio e longo prazo, os danos crônicos ocasionados pelo ácido, nas frágeis células do esôfago, podem ocasionar problemas muito complicados, como câncer no estômago e no próprio esôfago [12].

Não se esqueça que outras orientações, como não fazer refeições muito volumosas, se alimentar cerca de 3 horas antes de dormir e esperar mais de 1 hora para se deitar, após qualquer refeição, também são importantes.

Na segunda parte desse post, apresentarei um caso prático (com imagens) da melhora significativa de um paciente que apresentava refluxo — já com lesões significativas no esôfago. Tudo isso após a adoção de uma dieta reduzida em carboidratos.


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Posts da série:





Referências

1. Dent J, et al. Epidemiology of gastro-oesophageal reflux disease: a systematic review. Gut. 2005;54(5):710-7.

2. Reimer C, et al. Proton-pump inhibitor therapy induces acid-related symptoms in healthy volunteers after withdrawal of therapy. Gastroenterology. 2009;137(1):80-7, 87.e1.

3. McColl KE, Gillen D. Evidence that proton-pump inhibitor therapy induces the symptoms it is used to treat. Gastroenterology. 2009;137(1):20-2.

4. Sugerman HJ. Increased intra-abdominal pressure and GERD/Barrett's esophagus. Gastroenterology. 2007;133(6):2075.

5. Locke GR 3rd, et al. Risk factors associated with symptoms of gastroesophageal reflux. Am J Med. 1999;106(6):642-9.

6. Corley DA, et al. Abdominal obesity and body mass index as risk factors for Barrett's esophagus. Gastroenterology. 2007;133(1):34-41.

7. Lee HR, Pimentel M. Bacteria and irritable bowel syndrome: the evidence for small intestinal bacterial overgrowth. Curr Gastroenterol Rep. 2006;8(4):305-11.

8. Yancy WS Jr, et al. Improvement of gastroesophageal reflux disease after initiation of a low-carbohydrate diet: five brief case reports. Altern Ther Health Med. 2001;7(6):120, 116-9.

9. Austin GL, et al. A very low-carbohydrate diet improves gastroesophageal reflux and its symptoms. Dig Dis Sci. 2006;51(8):1307-12.

10. Pereira SP, et al. Drug-induced hypochlorhydria causes high duodenal bacterial counts in the elderly. Aliment Pharmacol Ther. 1998;12(1):99-104.

11. Compare D, et al. Effects of long-term PPI treatment on producing bowel symptoms and SIBO. Eur J Clin Invest. 2011;41(4):380-6.

12. Kim JJ. Upper gastrointestinal cancer and reflux disease. J Gastric Cancer. 2013;13(2):79-85.



terça-feira, 2 de setembro de 2014

Sódio faz mal à saúde?




Essa é unanimidade: sódio (sal) em “excesso” faz mal à saúde.

Será mesmo?

Vamos entender um pouco melhor a influência que o sal, o sódio e outros nutrientes possuem sobre a nossa saúde — especialmente a saúde cardiovascular.


Sal e sódio: importância e aplicações

O sal nada mais é que um composto formado por duas substâncias: sódio (Na) e cloreto (Cl). Por esse motivo, o sal também é chamado de cloreto de sódio (NaCl). Quando ingerido e metabolizado, o sal é naturalmente “separado” em nosso organismo, com os íons sódio e cloreto circulando de forma relativamente livre e independente no sangue.

Em suas formas livres, tanto o sódio como o cloreto são íons, ou seja, partículas com algum tipo de carga (positiva ou negativa). O sódio possui carga positiva, por isso é comum encontrar a grafia Na+. O cloreto, por sua vez, tem carga negativa, e é por esse motivo que podemos nos referir a ele como Cl-. As cargas positiva e negativa do sódio e do cloreto, respectivamente, fazem com que eles sejam capazes de regular inúmeros processos no nosso corpo, principalmente a quantidade fluidos dentro e fora de cada uma de nossas células. E é exatamente por isso, entre outros motivos mais específicos, que esses nutrientes — juntos com potássio, cálcio, magnésio etc. — são tão importantes para nossa saúde.

Além disso, como bem sabemos, o cloreto de sódio é amplamente utilizado na culinária, como forma de melhorar ou realçar o sabor dos mais diversos tipos de alimentos e preparações. E não apenas em alimentos naturalmente “salgados”, tendo em vista que até mesmo preparações doces muitas vezes utilizam o sal para dar um toque especial. Além disso, o sal ainda é amplamente utilizado na conservação de alguns produtos, como peixes e alguns alimentos fermentados. Culturalmente, quase todas as populações no mundo usam o sal em sua culinária.


Recomendações de sal e sódio

A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que a ingestão de sódio seja inferior a 2000 mg/dia [1]. Isso equivale a 5 g/dia de sal. O cálculo é feito da seguinte forma: do peso total do cloreto de sódio (NaCl), 40% corresponde ao sódio e 60% corresponde ao cloreto; assim, quando calculamos 40% dos 5 g de sal, obtemos o valor de 2 g (ou 2000 mg) de sódio.

O Ministério da Saúde, aqui no Brasil, segue exatamente as recomendações da OMS: até 5 g/dia de sal (2000 mg de sódio) [2]. Essa quantidade corresponde, em medida caseira, a apenas 1 colher rasa de chá (um pouco maior que aquela menorzinha, a colher de café). Dá pra ver que é realmente uma quantidade bem pequena. De qualquer maneira, estima-se que a população brasileira ingere uma média de 9,6 g/dia de sal, ou seja, o dobro do que é atualmente recomendado [2].

Mas qual seria o impacto desse consumo “elevado” de sal?


Sódio e pressão arterial

Nesse tópico não há muita controvérsia. A redução no consumo de sal realmente parece diminuir a pressão arterial, tanto em indivíduos hipertensos (pressão arterial elevada) como em indivíduos com níveis normais de pressão [3]. E não é uma mera associação, e sim uma relação de causa e efeito: menos sódio = menor pressão arterial.

Ao mesmo tempo, sabe-se que existe uma relação entre maiores níveis de pressão arterial de a ocorrência de problemas cardiovasculares [4]. E é exatamente aí que mora o problema. Essa relação é apenas uma associação que os estudos observacionais mostram. Não é possível concluir, a partir de estudos observacionais, que existe uma relação de causa e efeito.

Além disso, duas ressalvas importantes devem ser feitas:

1) Apesar da redução no consumo de sódio diminuir a pressão arterial em indivíduos com ou sem hipertensão [3], indivíduos com pressão arterial normal não passam a apresentar hipertensão simplesmente por aumentarem o consumo de sódio na dieta [5]. Isso que dizer o seguinte: pessoas aparentemente saudáveis, e que apresentam pressão arterial normal (dentro dos valores de referência), apresentam sim uma leve queda na pressão quando reduzem o sódio na dieta; entretanto, quando aumentam a ingestão de sal, a pressão arterial desses mesmos indivíduos saudáveis pode até aumentar um pouco, mas não passam dos limites de referência.

2) A despeito da relação existente entre maiores níveis de pressão arterial e a ocorrência de problemas cardiovasculares, estudos mostram que a redução na pressão arterial parece não reduzir o risco de mortalidade por doenças cardiovasculares [6]. E isso provavelmente é verdade porque inúmeros são os fatores que contribuem para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Ou seja, é tanta coisa envolvida que, em muitos casos, modular a pressão arterial nem sempre resultará em diminuição no risco desse tipo de patologia.

Considerando esses dois aspectos, não é possível afirmar que a redução da pressão arterial, através do menor consumo de sódio da dieta, seria uma estratégia realmente efetiva para a prevenção de problemas cardiovasculares — inclusive em indivíduos que já possuem hipertensão.


Sódio, doenças cardiovasculares e mortalidade

Diversos estudos de revisão e meta-análise têm constatado que a redução no consumo de sódio, justamente nas quantidades recomendadas pela OMS (até 2000 mg/dia), parece não conferir qualquer benefício na saúde dos pacientes [7,8,9,10,11]. Além de não conferir efeitos positivos, a ingestão reduzida de sódio na dieta tem sido demonstrada — em diversos estudos recentes — como fator de risco para a ocorrência de eventos e mortalidade por doenças cardiovasculares, além de aumentar também o risco de mortalidade por todas as causas [7,12,13,14,15].

É importante mencionar que o consumo excessivo de sódio, acima de 4800 mg/dia (12 g/dia de sal), também aumenta o risco de mortalidade por doenças cardiovasculares. Ou seja, quando o sódio está em excesso de verdade, ele certamente também não é bom. Entretanto, o consumo de sal entre 5 e 10 g/dia (2000 a 4000 mg/dia de sódio) — apesar de ser acima do recomendado pela OMS — foi o consumo que se mostrou mais protetor contra o risco de mortalidade nos estudos citados anteriormente.

Lembra que o sal, além do sódio, é composto também por cloreto? Pois é, um outro estudo recente verificou que a baixa concentração de cloreto no sangue de pacientes hipertensos também aumenta o risco de mortalidade [16]. A menor quantidade de cloreto no sangue desses indivíduos provavelmente reflete a menor ingestão de sal pela dieta. Assim, mais uma vez, a redução no consumo de sal (sódio e cloreto) foi associada ao maior risco de mortalidade.


Sódio, potássio e magnésio

A relação do sódio com a saúde, especialmente a saúde cardiovascular, vai além. Muitas vezes esquecemos o papel que outros nutrientes e compostos da dieta podem exercer nessa história.

Um dos principais aliados da saúde cardiovascular é o potássio. Diversos estudos vêm demonstrando que o balanço entre o consumo de sódio e potássio é muito mais importante do que avaliar apenas a ingestão de sódio ou sal [17,18,19,20,21]. Isso acontece porque o sódio e o potássio atuam em sinergia no nosso corpo, e o desbalanço entre eles é o que provavelmente leva a problemas no equilíbrio das nossas funções fisiológicas.

Nesse contexto, é justamente a menor ingestão de potássio, devido ao baixo consumo de frutas e hortaliças em nossa população, que provavelmente contribui para que o sódio seja constantemente associado a diversos problemas de saúde, especialmente às doenças do sistema cardiovascular.

Além disso, outros nutrientes também podem estar relacionados nesse cenário. Recentemente, um estudo de revisão e meta-análise, que avaliou diversas outras pesquisas anteriores, concluiu que tanto a concentração sanguínea como a ingestão dietética de magnésio estão associados ao risco de doenças cardiovasculares [22]. E as conclusões são sempre as mesmas, também em outros estudos: quanto mais magnésio, menor o risco [23]. Assim, considerando que o consumo de magnésio é muitas vezes extremamente baixo — até mesmo naquelas pessoas que possuem uma alimentação saudável —, é muito importante ficar atento a esse nutriente.


Considerações finais

É muito provável que a associação encontrada, em alguns estudos, entre o elevado consumo de sódio e o risco de saúde seja, na verdade, reflexo do elevado consumo de produtos industrializados e processados. A alta disponibilidade de produtos desse tipo “naturalmente” leva a população a consumi-los, e como normalmente são muito ricos em sódio, é possível que os crescentes problemas crônicos de saúde associados ao consumo de sódio sejam decorrentes da ingestão aumentada de produtos industrializados — os quais contêm elevada quantidade de substâncias químicas e sintéticas adicionadas a eles. Considerando as evidências mencionadas anteriormente, é bem possível que essa seja a verdadeira associação e que, talvez, o sódio em si realmente pouco ou nada tem a ver com malefícios à saúde cardiovascular.

Isso não quer dizer que você deve comer sal até não aguentar mais, mas sim que a preocupação com o sódio parece ser exagerada. A verdade é que comendo comida de verdade, incluindo muitas frutas e hortaliças — e evitando ao máximo o consumo de produtos industrializados e processados —, é muito provável que o indivíduo não precise se preocupar com a ingestão de sódio e possa adicionar sal a gosto em suas preparações. Naturalmente o consumo de sódio vai tender a estar em equilíbrio com o consumo de potássio (e magnésio), o que, como mencionado antes, parece ser muito mais importante para a saúde.

No geral, sal e sódio não representam um problema.


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Referências

1. World Health Organization. Guideline: sodium intake for adults and children. Geneva, 2012.

2. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira: promovendo a alimentação saudável. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. 210 p.

3. Graudal NA, et al. Effects of low sodium diet versus high sodium diet on blood pressure, renin, aldosterone, catecholamines, cholesterol, and triglyceride. Cochrane Database Syst Rev. 2011;(11):CD004022.

4. Kokubo Y, Kamide K. High-normal blood pressure and the risk of cardiovascular disease. Circ J. 2009;73(8):1381-5.

5. Stolarz-Skrzypek K, et al. Blood pressure, cardiovascular outcomes and sodium intake, a critical review of the evidence. Acta Clin Belg. 2012;67(6):403-10.

6. Lv J, et al. Effects of intensive blood pressure lowering on cardiovascular and renal outcomes: a systematic review and meta-analysis. PLoS Med. 2012;9(8):e1001293.

7. O’Donnell MJ, et al. Urinary sodium and potassium excretion and risk of cardiovascular events. JAMA. 2011;306(20):2229-38.

8. Institute of Medicine. Sodium intake in populations: assessment of evidence. Washington, DC: The National Academies Press, 2013.

9. Mitka M. IOM report: evidence fails to support guidelines for dietary salt reduction. JAMA. 2013;309(24):2535-6.

10. World Health Organization. Reducing sodium intake to reduce blood pressure and risk of cardiovascular diseases in adults. Geneva, 2014.

11. Taylor RS, et al. Reduced dietary salt for the prevention of cardiovascular disease. Cochrane Database Syst Rev. 2011;(7):CD009217.

12. Ekinci EI, et al. Dietary salt intake and mortality in patients with type 2 diabetes. Diabetes Care. 2011;34(3):703-9.

13. Stolarz-Skrzypek K, et al. Fatal and nonfatal outcomes, incidence of hypertension, and blood pressure changes in relation to urinary sodium excretion. JAMA. 2011;305(17):1777-85.

14. Graudal N, et al. Compared with usual sodium intake, low- and excessive-sodium diets are associated with increased mortality: a meta-analysis. Am J Hypertens. 2014 Sep;27(9):1129-37.

15. O’Donnell M, et al. Urinary sodium and potassium excretion, mortality, and cardiovascular events. N Engl J Med. 2014;371(7):612-23.

16. McCallum L, et al. Serum chloride is an independent predictor of mortality in hypertensive patients. Hypertension. 2013;62(5):836-43.

17. Morris RC Jr, et al. Relationship and interaction between sodium and potassium. J Am Coll Nutr. 2006;25(3 Suppl):262S-270S.

18. Houston MC, Harper KJ. Potassium, magnesium, and calcium: their role in both the cause and treatment of hypertension. J Clin Hypertens. 2008;10(7 Suppl 2):3-11.

19. Aburto NJ, et al. Effect of increased potassium intake on cardiovascular risk factors and disease: systematic review and meta-analyses. BMJ. 2013;346:f1378.

20. Koliaki C, Katsilambros N. Dietary sodium, potassium, and alcohol: key players in the pathophysiology, prevention, and treatment of human hypertension. Nutr Rev. 2013;71(6):402-11.

21. Weaver CM. Potassium and health. Adv Nutr. 2013;4(3):368S-77S.

22. Del Gobbo LC, et al. Circulating and dietary magnesium and risk of cardiovascular disease: a systematic review and meta-analysis of prospective studies. Am J Clin Nutr. 2013;98(1):160-73.

23. Joosten MM, et al. Urinary and plasma magnesium and risk of ischemic heart disease. Am J Clin Nutr. 2013;97(6):1299-306.